SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
A MENINA BONITA
m dia já ao entardecer, a Quintas apareceu para entregar a roupa ao Cuxixo e ao mesmo tempo para me ver. Vinha acompanhada por uma menina muito linda, aparentando ter quatro ou cinco anos.
Comecei a brincar com a menina e disse para a Quintas:
- Afinal tens uma filha e não me disseste nada; e não me desmintas porque ela é tão linda como tu.
Ela riu‑se lisonjeada e satisfeita com as minhas palavras. Disse para eu acreditar, porque a menina não era filha dela, mas sim de uma vizinha.
- Então porque é que só hoje a trouxeste? Disse eu.
- É para tu lhe dares bolachas, respondeu ela.
‑ Agora não tenho, - disse eu - mas vou comprar ao quartel e levo‑te a casa.
‑ Está bem Scherno.
Disse ela.
Deixei de afagar a cabeça à menina, porque fiquei alarmado ao vê‑la sempre com os dedos na boca, a esfregar as gengivas.
Perguntei à Quintas o que tinha a menina. Respondeu‑me que "tinha bicho". Sem hesitar tirei os dedos da boca da menina e ela coitadinha olhava para mim a sorrir, e com uma enorme simpatia.
Tinha as gengivas completamente corroídas, em avançado estado de evolução, o que me deixou bastante preocupado.
Peguei‑a ao colo e disse para a Quintas:
‑ Anda leva‑me à mãe da menina.
Os outros quiseram ver e ficaram alarmados, perguntando‑me o que é que eu ia fazer. Disse‑lhes que a ia levar ao furriel Santinho.
A Quintas seguia ao meu lado, acompanhando‑me apressadamente, ao mesmo tempo que tentava falar e balbuciava:
‑ Mas Scherno?...
Eu, vendo‑a confusa e atrapalhada, disse:
- Quintas, tem calma que eu depois explico-te. Por agora só te digo que a menina está muito doente e que precisa de ir para o hospital para se curar.
A mãe, ao ver‑me entrar com a menina ao colo sorriu, como se nada de grave se tratasse.
Era ainda muito jovem, aparentando ter a idade da Quintas, vinte e um ou vinte e dois anos.
Falei‑lhe com uma certa agressividade e, sempre com a menina ao colo disse‑lhe:
‑ A tua filha está muito doente e tu não fizeste nada para ela melhorar ... e ela pode morrer.
Olhou para mim completamente triste e desolada e disse:
‑ Tenho‑lhe dado muitos "mêzinhos" (plantas e ervas medicinais) só que ela não melhora e eu já não sei o que hei‑de fazer.
Olhei para ela e vi‑a triste e completamente desorientada, dando‑me a entender que nada mais podia fazer para melhorar a saúde da filha.
Desatou de repente em choro convulsivo, enquanto que a menina se mantinha ao meu colo sorridente e feliz, alheia ao infortúnio da doença, que por fatalidade a tinha atacado.
A mãe continuava a chorar, enquanto a Quintas a tentava consolar, ao mesmo tempo que acalentavam em mim a esperança de uma tábua de salvação para curar a menina da terrível doença.
Voltei‑me para ela e perguntei:
‑ Então e o teu homem? Por onde é que anda?
- Está na bolanha a trabalhar a terra para semear o arroz.
- Nesse caso anda comigo lá a cima à enfermaria. Depois contas‑lhe o sucedido.
Viemos para cima e a Quintas fez questão de trazer a menina, para me aliviar um pouco os braços, embora a menina não fosse muito pesada.
O furriel Santinho depois de examinar minuciosamente a menina, mandou‑me ir chamar o capitão Capucho, que há poucos dias tinha regressado de licença da Metrópole.
O capitão depois de ver a menina, mandou o furriel Santinho preencher uma guia para o Hospital Civil de Bissau, que depois assinou. De seguida entregou a criança à mãe, dizendo‑lhe para estar ali no dia seguinte às 8 horas, que o Salsicha as transportaria no nosso barco e depois já em Bissau, as acompanhava até ao hospital.
O furriel Santinho não era médico, mas dentro dos poucos conhecimentos que possuía de medicina, tratava pretos e brancos de igual modo, sem olhar a raças ou etnias. Por esse motivo aqui fica a minha gratidão, que honra lhe seja feita e igualmente para o capitão Capucho, pelo seu grande sentido de humanidade.
Saímos e eu fui comprar bolachas para a menina, que ficou radiante e feliz, olhando-nos com o pacote das bolachas na mão.
Depois, conforme prosseguíamos perguntei há mãe o que pensava fazer. Disse-me que ía falar com o homem dela e que custasse o que custasse, tinha de curar a filha.
Quando chegámos já o pai da menina nos esperava. Devia ter de trinta a trinta e três anos. Conversámos e eu fiz‑lhe ver a situação crítica em que a menina se encontrava, e que se não fossem com ela para o hospital, a doença progredia e a menina podia morrer.
Meteu as mãos na cabeça e pôs‑se a pensar, até que com as lágrimas a deslizar pelo rosto pronunciou estas palavras:
‑ Eu vou mas não tenho dinheiro. Resta-nos os parentes que temos em Bissau, mas eles infelizmente também são pobres ... mas tenho fé que nos irão ajudar a curar a menina.
- Ficaremos por lá o tempo que for necessário, até que ela fique boa, e entretanto vamos trabalhando ao lado deles na bolanha.
Dito estas palavras, voltou‑se para as suas outras três mulheres e pô-las ao corrente do que se estava a passar, deixando‑lhes a responsabilidade da casa e da colheita do arroz na bolanha.
Começava a escurecer e a Quintas impaciente ia‑me apertando e puxando pelo braço.
Despedi‑me, dizendo que amanhã às oito horas estaria no cais para os ver partir. Agradeceram‑me e eu saí com a Quintas em direcção a casa, que ficava a uma centena de metros.