SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

OS PAIS DA QUINTAS

 

        

O pai da Quintas estava cá fora encostado ao muro fumando cachimbo. Demos‑lhe a saudação e contámos‑lhe o que se passava. Ele, depois de nos ouvir ficou mais sossegado, uma vez que não lhe devia ter agradado nada ver a filha chegar acompanhada de um branco e ainda por cima à noite.

         Conversámos durante alguns momentos com a mãe, que acabou por se nos juntar. O pai devia de rondar os sessenta anos, a mãe aparentava ter quarenta.

         Despedi‑me receando algum ataque do inimigo e ser apanhado ali, desprevenido.

         Mais tarde tive oportunidade de conviver com os pais da Quintas e a impressão que fiquei deles no primeiro dia que os conheci logo se dissipou. Na generalidade eram pessoas compreensivas e excepcionais, que faziam uma vida pacata e independente, sem atritos nem mexericos com a vizinhança.

         Metia‑me confusão vê‑los a viver só os três, uma vez que não era normal, porque a maioria das tabancas eram habitadas por famílias mais numerosas, compostas principalmente por mulheres e crianças.

         Um dia, por curiosidade, perguntei à Quintas se o pai não tinha tido outras mulheres e mais filhos.

         Disse‑me que antes da guerra o pai tinha sido um homem muito poderoso, com vastas colheitas de arroz e amendoim, e que possuíra muitos rebanhos de gado, principalmente porcos e vacas. E que mulheres tinha tido muitas, com muitos filhos, mas que não sabia ao certo quantas.

         Perguntei‑lhe o que foi feito dessa gente. Respondeu-me que umas foram capturadas pelo inimigo juntamente com os filhos, outras que tinham morrido nos bombardeamentos e de doenças, incluindo as crianças.

         Disse‑me também que já se tinham passado muitos anos, que não se lembrava de nada, mas que segundo o que o pai lhe contava, ela seria a mais nova dos irmãos.

         Depois de satisfazer a minha curiosidade voltou a falar e disse:

         - Pronto Scherno; agora já sabes os motivos de o meu pai ser triste e pouco falador.

         Ele é um homem revoltado contra a guerra, porque a guerra veio‑nos tirar a paz e o sossego a que estávamos habituados. A Guiné antes da guerra era um Paraíso, e depois deixou de o ser, para se tornar num inferno.

         Agora que já sabes tudo, só te quero pedir para que nunca penses mal do meu pai, porque ele é um homem bom e gosta muito de ti.

         Está sempre a dizer que tu és humano e generoso, e que gostava muito que tu ficasses comigo, até ao fim das nossas vidas.

         Não lhe respondi mas pensei:

         ‑ "Se não fosse casado e não tivesse filhos, ou se tivesse a fatalidade de levar com o "carril do comboio", tal como aconteceu ao Fiúza e ao Cuxixo ... podias ter a certeza que ficava ao teu lado, até ao fim da minha vida ... mas assim é impossível, porque eu amo e adoro a minha mulher".

         Eu gostava e gostei muito, mesmo muito da Quintas. Mas por outro lado também gostava muito, mesmo muito da minha mulher, e dos meus filhos.

         Pensava muito neles e vivia na incerteza se algum dia os voltaria a ver. E foi talvez por este motivo que eu me dediquei tanto à Quintas. Pelo menos se tivesse a infelicidade de morrer, morreria junto de uma mulher que me amava e adorava.

         Pensava assim naqueles tempos e tenho a certeza que voltaria a pensar agora, se tudo se voltasse a repetir.

 

         No dia seguinte logo pela manhã, vim ao cais para dizer adeus à menina bonita.

         Dei‑lhe três latas de leite e três pacotes de bolachas made in Holanda. Depois beijei‑a e despedi‑me dos pais. E por ali fiquei tristemente a ver o barco a afastar‑se, ao mesmo tempo que ia pedindo a Deus para curar a menina.