SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
O FORNILHO
comandante do Batalhão (tenente coronel) Flores Gomes, a quem nós chamávamos o "Zé das Vacas", partiu de licença para a Metrópole, ficando no seu lugar, assumindo o cargo, e toda a responsabilidade do Batalhão, o major Carlos Pereira.
Acontece que todas as manhãs íamos picar o solo da pista de aviação e da estrada que ligava Tite ao Enxudé, a fim de verificarmos se o inimigo tinha colocado alguma mina ou engenho explosivo.
Fazíamos esse serviço que era de grande responsabilidade, com uns ferros de bico bastante afiado.
Ao mesmo tempo que começávamos a picar a estrada partindo de Tite, começavam os outros partindo do Enxudé e quase sempre nos encontrávamos a meio do percurso. Só depois de tudo muito bem verificado é que os carros começavam a circular, com a vigilância e protecção constante de dois pequenos carros de combate, que passavam o dia para baixo e para cima, embora muitas das vezes nós também fossemos destacados para fazer vigia e segurança à estrada, mas nunca dispensando os dois pequenos carros de combate, que andavam comandados por dois camaradas e equipados com duas metralhadoras anti-áereas.
Num desses dias, por volta do meio dia, quando os dois carros se cruzaram, o inimigo, maquiavélicamente, aproveitou o tempo que demoravam a cruzar-se e, em menos de um relâmpago, cavou a estrada e montou um fornilho (engenho explosivo de grande potência). Na altura em que um dos carros vem lentamente a passar, explodiu. E a explosão foi de tal maneira violenta que do carro nada se aproveitou. Os dois camaradas ficaram praticamente reduzidos a pó. Procurámos o que restava dos corpos mas pouco encontrámos.
A nossa revolta não teve limites. Chorámos dolorosamente a morte desses dois camaradas, que encontraram a morte somente a 23 dias de acabarem a comissão, quando ainda por cima um deles era casado e tinha dois filhos.
O major Carlos Pereira, logo que teve conhecimento do sucedido, ficou louco e cego de raiva. Deu ordem imediata para apontar o obus em direcção à aldeia que se encontrava perto da catástrofe, para destruir tudo, inclusivamente a população. E não foi por milagre, devido à imediata intervenção do major José Fagundes, adjunto do Batalhão, que conseguiu com muito custo acalmar a ira e a revolta do 2.º comandante major Carlos Pereira, caso contrário teria sido uma autêntica carnificina e iriam pagar por isso muitos inocentes, crianças, velhos e mulheres.
Felizmente para eles, o major conseguiu acalmar, a ira e a revolta, embora para nós ficasse e perdurasse no peito, uma grande ferida, cheia de revolta e raiva, pelo infortúnio dos nossos dois camaradas.
Mas os princípios que nos norteavam, colocavam a protecção de civis sempre como prioridade máxima.
Houve casos em que se fugiu frente ao inimigo só para não se disparar na sua direcção, evitando assim atingir aldeias com população civil.
Foi uma guerra apenas entre soldados. As emboscadas eram no mato. Os golpes de mão apenas aos aquartelamentos ... e tanto Portugueses como ‘’Turras’’ alinhavam nesta mesma forma de guerra.
Lutávamos como bons soldados. Sem ódio nem rancor contra a população. Tudo fazendo para restabelecer a paz que tanto desejávamos e que quase chegou a ser uma realidade naquela parcela de Portugal.
Dedicámo-nos à população dando-lhes assistência e transmitindo-lhes os nossos conhecimentos, mostrando-nos dignos pelo nosso comportamento, do respeito e amizade daquela gente boa que considerávamos e consideramos irmãos.
O major Carlos Pereira era um homem bom, simples e humano, que zelava pelos homens que comandava. Simpático e sem vaidade, que não conseguia esconder o sofrimento e a revolta com as baixas causadas pelo inimigo.
Era de uma humanidade sem limites, mas naquele dia podia ter acontecido o pior. Felizmente que se controlou a tempo, graças ao major Fagundes.
A vida dos soldados para ele era sagrada. Não quero exagerar mas dava-nos até a nítida sensação, que nos protegia tanto como um pai protege os seus filhos.
Numa entrevista que concedeu ao nosso pequeno jornal ‘’Os Dragões de Jabadá’’, perguntaram-lhe qual o pior momento que viveu na Guiné e ele respondeu que foi quando teve conhecimento que um militar seu caiu numa mina e ficou sem uma perna (que neste caso foi o Augusto).
Perguntaram-lhe também quais os melhores momentos e ele respondeu que eram aqueles em que dava uma rebocada ao seu pessoal e nós reconhecíamos que tinha razão.
Procurou sempre educar os mais incultos e referia muitas vezes com grande satisfação a maneira como todos os seus militares se apresentavam, tanto fardados como disciplinarmente.
A sua maneira de ser e de educar marcou-nos positivamente. Por tudo isso, Bem Haja ... major Carlos Pereira.