SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

OS  ATAQUES  E  AS  EMBOSCADAS

 

        

 

ntretanto o alferes Samaritano regressou de férias e foi-se encontrar connosco para assumir o comando do 4.º pelotão.

         Comecei-me a ambientar à nova vida, Tite era diferente parecia quase uma cidade, dando até a sensação que o tempo ali se passava melhor e com mais alegria. Talvez devido ao ambiente, à grandeza do quartel e às tabancas da população que o rodeavam.

         Era enorme, só que nem tudo o que aparenta é ... e nunca me tinha passado pela cabeça o que nos estava reservado, nem nunca tinha pensado que, quanto maior é a Nau maior é o tormento.

         Fui-me encontrar com o meu amigo Mário para beber umas cervejas e acabei por encontrar também um velho amigo da mesma profissão, o Alcino. Ambos tínhamos trabalhado em Artes-Gráficas e para lá voltaríamos, se não morrêssemos na guerra. Mas o Alcino não voltou mais para artes-gráficas. É actualmente  director na Casa da Moeda. Foi um grande amigo enquanto estive em Tite.

         Os ataques ao aquartelamento sucediam-se, principalmente à noite, mas o pior era que muitas das vezes éramos apanhados desprevenidos, quase sempre quando nos encontrávamos a conversar no meio do comando, e deste modo assim que começavam os rebentamentos, cada qual fugia para o seu lado, procurando uma vala, ou um abrigo seguro.

         O mais grave é que a maioria pertencíamos aos postos avançados onde se encontrava toda a artilharia, competindo-nos defender o quartel. Mas debaixo de fogo era impossível chegarmos lá para ajudar os poucos que lá ficavam e que tinham de se defender com unhas e dentes, embora a defesa em Tite fosse mais fácil e segura, muito diferente de Jabadá ou Nova Sintra valia-nos um potente obus que mandava grandes "ameixas" que os punha mais à distância. Cada vez que rebentava uma dessas "ameixas" todo o quartel estremecia e quando rebentavam perto do inimigo de certeza que eles tremiam.

         Começámos a sair para as emboscadas. Normalmente saíamos dia sim dia não e muitas das vezes acompanhados com um pelotão da companhia de Tite, perfazendo assim um total de 60 e poucos homens, saíamos por volta das 17 h e regressávamos por volta da meia-noite.

         Numa dessas tardes quando caminhávamos, já embrenhados pelo meio da selva, deparámos frontalmente com três indivíduos que vinham a fumar e cada qual com uma catana na mão e uma Klashnicov na outra.

         Mais tarde reconhecemos serem os guias do inimigo que vinham a abrir o caminho.

         O encontro teve um desfecho tão rápido que mal nos deu tempo de olhar bem para eles. O inimigo vinha logo atrás. Perante tamanha surpresa gerou-se uma confusão com disparos directos, ao mesmo tempo que corríamos a procurar abrigo onde nos pudesse-mos ocultar, neste caso os Bága-Bágas que eram uns montes construídos pelas formigas e mais resistentes que ferro, onde os estilhaços e as balas batiam mas não faziam moça, depois de fazerem ricochete dispersavam-se para longe.

         Os três guias foram os primeiros a cair juntando-se a eles o "turra" que seguia em primeiro com a bazuca ... esses quatro já não faziam mal a ninguém.

         A luta foi renhida. E talvez durante 45 minutos, estivemos metidos num autêntico inferno, sempre a fugirmos de um lado para o outro, tentando resistir-lhes a todo o custo ... e um dos maiores perigos era precisamente termos de andar a fugir de um lado para o outro, uma vez que eles minavam e armadilhavam por todo o sítio. Tínhamos portanto 99,9 % de possibilidades de pisar alguma mina.

         O destino foi cruel e ingrato. A fatalidade veio bater à nossa porta.

         De repente ouviu-se um grande rebentamento, seguido de uma grande nuvem de poeira e de gritos lacinantes. O inimigo aproveitando-se da confusão, carregou ainda com mais força sobre nós, e apercebendo-nos que tínhamos uma baixa. Enchemo-nos de raiva e fomo-nos a eles como leões. Pouco mais tempo nos resistiram, até que acabaram por recuar e dispersar.

         Imediatamente fomos em socorro do nosso camarada ferido. Deparámos com o Simões que pertencia à companhia de Tite, estendido no chão e já sem a perna esquerda. Ficámos tristes e revoltados contra o maldito ou malditos homens que inventaram as minas,  contra quem as fabricava, e quem as colocava no terreno para nos deixarem inválidos para o resto da vida.

         Perante tal situação gritávamos enraivecidos e cheios de ódio!... Contra quem as inventou e fabricou. Malditos, bandidos, assassinos, loucos, filhos da puta!... Vocês é que deviam vir para cá, para serem desfeitos pelo vosso terrível, monstruoso e nojento invento, cientistas de merda, assassinos, vocês não são cientistas, o que vocês são é loucos, porque cientistas são aqueles que inventam e descobrem em benefício da natureza e para o bem da humanidade! ... Os outros não são cientistas; são sim uns monstros com um cérebro terrível, que só inventam e estudam a melhor maneira de destruir a Humanidade,  e dar cabo do Planeta ... gritávamos e chorávamos cheios de raiva, e tenho a certeza que se numa altura dessas apanhasse-mos um desses ‘’animais’’, comíamo-lo à dentada e depois vomitávamo-lo.

         A nossa ira era tanto maior quanto, do nosso lado, havia ordem do comandante de Batalhão para não colocarmos minas senão nos perímetros de protecção das populações.

         Entretanto comunicou-se para Bissau a pedir que mandassem um helicóptero e enquanto esperávamos, uns ficaram junto do Simões e outros foram fazer o reconhecimento. Os três guias estavam bem mortos e com toda a certeza que não mais iriam abrir o caminho ao inimigo para nos atacar. O "turra" da bazuca tinha sido atingido no ventre e encontrava-se estendido no chão com as tripas de fora, e com a bazuca bem segura de encontro ao peito.

         Quando o furriel Anastácio se debruçou  para lhe tirar a bazuca,  para nossa surpresa o gajo estava vivo e cheio de força, porque não a queria largar. Abriu os olhos para nós injectados de sangue, mostrando ódio e raiva. O furriel insistiu mas o gajo não cedia, tirando não se sabe de onde uma pistola pronta a disparar, que apontou ao furriel. Este, porém, mais rápido deu-lhe uma rajada de G-3, deixando-o praticamente separado do umbigo para baixo.

         Ficámos espantados perante tanta resistência, porque o gajo mesmo separado não cedia, até que o furriel mudou o carregador da arma e mais uma vez lhe desfechou uma rajada, na cabeça.

         Geralmente dávamos imediato socorro aos feridos, não os distinguindo dos nossos, mas este foi abatido cruelmente devido à sua persistência.

         Perdeu a vida lutando pela sua futura Pátria, assim como, também centenas de jovens Portugueses a perderam em nome da sua Pátria.

         Achámos que era incrível e impressionante tanto desprezo pela vida. Preferiu ser cravejado de balas a entregar a arma ... que forte mentalização... que grande lavagem cerebral lhe teriam dado. E quem os instruiu. Quem lhes dava o curso de mentalização? Os mercenários Cubanos? 

         Continuámos com o reconhecimento e notámos que lhes devíamos ter causado bastantes baixas. As ervas e o mato  mostravam bem o arrastar dos corpos feridos, deixando rastos de sangue.

         Entretanto chegou o helicóptero que levou o infeliz do Simões e aproveitámos para deixar aquele lugar sinistro e de imediato nos dirigimos ao quartel, deixando para trás os corpos a repousar no solo, para eles os levarem e tratarem dos rituais fúnebres.

         Voltámos no dia seguinte logo pela manhã e não vimos vestígios nenhuns. Os gajos eram peritos em limpar, lavar e disfarçar.