SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
O SONHO
barracão onde eu dormia com o Manaças tinha em frente a casa mortuária, onde se encontravam depositadas dezenas de urnas que ali iam esperando transporte para a Metrópole.
Quando o vento soprava na nossa direcção, tornava-se insuportável permanecer ou dormir dentro do barracão, devido ao cheiro que provinha da casa mortuária, com os corpos já em completa decomposição devido ao calor intenso que se fazia sentir.
Por esse motivo, eu fugia dali a sete pés e deitava-me tarde e a más horas, de propósito tentando estar lá o mínimo possível.
Com o tempo comecei a adquirir confiança com a maior parte dos enfermeiros. Um dia ao jantar fui informado por um deles, que tinham lá um camarada hospitalizado que pertencia à minha Companhia e que se encontrava mais para lá, que para cá, devido a estar 10 dias sem comer e beber.
Explicaram-me que apanhou o Paludismo e que sem comer nem beber durante tantos dias tinha chegado àquele estado deplorável e cadavérico. Logo nessa noite insisti com eles para me levarem à sala onde se encontrava o tal camarada. E o que vi nem quero lembrar. O "Pai do Sono" estava de facto completamente cadavérico, todo ele era pele e osso com a seringa do balão de soro, espetada no braço.
Quando me viu abriu os olhos e logo me reconheceu, começando a falar com muita dificuldade e cansaço.
- Disse-lhe com afecto e ânimo:
- Deixa lá que te hás-de recuperar:
- Não desanimes. O que é preciso é força de vontade para combater a doença ... porque recear a doença é ocasioná-la ... por isso não desesperes, porque em menos de nada vais ficar bom e ainda vamos ter oportunidade de beber uns copos lá em Jabadá.
Todas as noites eu estava junto dele, desde as 21 às 24 horas da noite. Vi a sua recuperação e quando me vim embora já ele tinha deixado os balões de soro.
Um dia o ‘’Pai do Sono’’, caminhando já para a boa recuperação disse-me:
- Está um gajo na enfermaria aí ao lado, que diz que te conhece e que tirou a especialidade de atirador contigo na Cavalaria 7.
Fui ver quem era e de facto consegui reconhecer o Abreu, que se encontrava amarelo, pior que um asiático.
- Então pá. Porque é que estás assim todo amarelo?... É unhas, olhos e corpo. Não há nada que não tenhas amarelo. Até parece que vestiste um equipamento do Atlético.
- Disse eu na brincadeira.
- Pois é Serra. A guerra para mim acabou. Aquilo lá por Bula torna-se cada vez mais impossível de enfrentar ... com os ‘’Turras’’ a atacarem-nos logo que saímos o arame farpado é raro o dia em que não há feridos.
Comecei a ter medo, e optei por danificar a saúde.
- Mas como pá? Explica-me o que é que fizeste para ficar assim. Perguntei eu :
- Foi fácil, e tu também podes fazer o mesmo para te livrares desta "merda" toda ... comecei a comer bananas e a beber cerveja em jejum e como vês o resultado foi este ... apanhei icterícia (hepatite) e muito em breve estou apanhar o barco para a Metrópole ! ...
Faz o mesmo e vais ver que te livras deste inferno em menos de nada, e depois lá, com boa alimentação, recuperas-te sem deixar vestígios da doença.
- Porra, pá. Disse eu a sorrir, olhando para ele.
- Antes quero morrer preto que amarelo. Agradeço-te o conselho mas não estou interessado.
Depois de lhe agradecer a ideia, saí desejando-lhe boa sorte na Metrópole e um rápido restabelecimento - isto no caso de não nos voltarmos a ver, mas felizmente ainda nos voltámos a ver por mais quatro ou cinco vezes.
À cabeceira da cama do Manaças havia uma prateleira em madeira, fixada na parede, onde ele tinha a lâmpada da luz e onde metia também uma torcida de fibra dura "Lion Brand" (produto Chinês) a arder durante toda a noite e que servia para afugentar as melgas e os mosquitos.
Numa noite em que o Manaças certamente estava a sonhar com a mulher, ou então com maus e agitados sonhos tocou na prateleira e a torcida caiu para cima dele, ateando fogo aos lençóis e começando-lhe a queimar as pernas.
Deduzo que ele, sentindo-se queimado, deva ter sacudido as pernas e como eu dormia ao contrário dele, com a cabeça para os pés, a torcida veio parar em cima do meu peito.
Comecei a ter um sonho terrível, encontrando-me no meio da selva, rodeado de fogo ... gritava por socorro, mas ninguém me conseguia libertar. Até que no meio de tanta dificuldade e aflição consegui acordar, inconsciente e sufocado sem poder respirar com tanto fumo e cheiro a pano queimado.
Corri e abri a porta, ao mesmo tempo que gritava pelo sentinela que guardava a casa mortuária para me vir ajudar.
Os dois pegámos o Manaças e trouxemo-lo para fora, já completamente intoxicado e inanimado. Com muito cuidado e persistência, fomos tentando reanimá-lo e aos poucos lá foi dando acordo de si.
Ainda hoje penso que aquele sonho, foi sem sombra de dúvidas um toque do sobrenatural, talvez porque a minha hora e a dele ainda não estavam marcadas para aquele dia, caso contrário o nosso fim seria morrermos queimados.