SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O  DIFÍCIL  REGRESSO  A  JABADÁ

 

        

 

oltei novamente a Brá para fazer mais quatro serviços. Entretanto, no hospital, o médico deu-me alta, dizendo que eu podia carregar, correr e até se quisesse, saltar à corda.

         Fui a Brá com o papel da alta e em troca preencheram uma guia de marcha que me entregaram, dizendo-me que estava com sorte, porque partia um barco para Jabadá ás 14 horas.

         De facto até dava para desconfiar e até achei que era sorte a mais, porque raramente atracava um barco em Jabadá. E quando isso acontecia, era só para descarregar géneros alimentícios. Praticamente de dois em dois meses.

         Voltei ao hospital e comecei a arrumar todas as minhas coisas no saco. Depois dei um grande abraço ao Manaças e agradeci-lhe a estadia. Ao mesmo tempo que me despedia, ele ia insistindo nas recomendações que já estava farto de me fazer ao longo de todos estes dias:

         - Não te esqueças, se alguma vez entrares em combate frontal, deixa ir os otários para a frente. Nunca fiques muito para trás, se não és apanhado à mão !... Pensa sempre que é preferível seres um cobarde vivo, que um herói morto.

         Aproveitei bem os conselhos que ele me deu, mas nem sempre era fácil pô-los em prática.

         O Manaças tinha sido atirador e operou em Buba, Bula e Aldeia Formosa, sector onde na altura se encontrava o batalhão de cavalaria 7.  Foi ferido em combate e uma vez ali no hospital, depois de restabelecido, conheceu alguém a quem meteu uma "cunha".  Como era pintor de profissão, teve sorte e deram-lhe o cargo de responsável pela pintura do hospital ...  função que soube desempenhar com mérito e responsabilidade.

         Cheguei ao cais e fui saber qual era o barco que partia para Jabadá às 14 horas. Informaram-me que o barco tinha os motores avariados e que possivelmente só no dia seguinte pela manhã é que estaria pronto para navegar.

         Fiquei atrapalhado e sem saber o que fazer ... e  pus-me a pensar:

         - Se for novamente para o Manaças é capaz de se tornar chato ... mas se for para os Adidos pior ainda. 

         Depois de muito pensar, decidi-me a ir para o Manaças ... e assim sucessivamente durante mais quatro dias.

         Todos os dias voltava ao cais e todos os dias me diziam o mesmo:

         - Amanhã é de certeza! O barco vai navegar.

         Comecei a ficar preocupado e muito mais que isso, completamente à deriva e desorientadíssimo.

         O Manaças vivia o meu problema e começou a ficar deveras preocupado. Aconselhou-me a ir aos Adidos comunicar o que se passava, antes que fosse dado como desertor.

         Imediatamente fui a Brá e logo me dirigi à secretaria do quartel, onde entreguei a guia de marcha que tinha em meu poder a um furriel, contando-lhe tudo o que se estava a passar. Ele por sua vez chamou o tal ‘’sargento de má pinta’’ e em poucos segundos deixou-o ao corrente da minha situação.

         A reacção dele não se fez esperar. Imediatamente deu ordem ao furriel para me elaborar um processo, ao mesmo tempo que gritava e barafustava comigo, chamando-me desertor, dizendo que eu andei a brincar com a tropa e que isso me ia sair muito caro.

         - Estou lixado! Pensei eu. Não vejo hipóteses de me safar, mas no entanto não há nada como tentar. Tenho de inventar rapidamente qualquer desculpa que lhe toque ao coração.

         - Meu Sargento, disse eu - o senhor desculpe, mas é que eu tenho andado completamente desorientado, com as notícias que ultimamente me têm chegado da Metrópole. Até lhe digo, que só me apetece sair daqui e pôr termo à vida. Depois do que me sucedeu, a vida para mim pouco significado tem!

         - Está maluco ou quê? Respondeu ele.

         - Conte-me lá qual é esse problema tão grave, que assim o aflige.

         Empenhei-me profundamente no drama que iria representar e com as mãos na cabeça e os olhos rasos de água, comecei a contar.

         - Sabe meu Sargento, eu sou casado e tenho dois filhos, um com um ano e outro com três, que para mim são os meninos mais lindos do mundo. Dito isto meti a mão no saco e tirei uma fotografia com a minha mulher e os dois filhos. Ele viu e disse:

         - Sim senhor, são de facto muito bonitos e a Mãe também é uma estampa de rapariga. Muito obrigado meu Sargento. Mas o problema é mesmo a Mãe!

         - Então como? Perguntou ele.

         - É que ultimamente tenho recebido cartas de familiares e amigos dizendo que ela não me é fiel e que me anda a meter os "cornos".

         - É pá. Isso é grave. E quem vai sofrer com isso mais tarde são os pobres dos meninos. Dizendo logo de seguida:

         - Lamento sinceramente o que lhe aconteceu e aconselho-o a ter calma e paciência. Você ainda é muito novo e quando regressar à Metrópole pode arranjar as mulheres que quiser e voltar a fazer uma vida normal, junto de quem o mereça. Por isso não pense em suicídio, pense sim mas é nos seus filhos, que ainda hão-de precisar muito de si.

         Dito isto voltou-se para o furriel e disse-lhe:

         - Preencha nova guia, depois rasgue esta e deite-a fora. E você - disse, voltando-se para mim, - desta vez está perdoado porque eu também sou humano e imagino bem o problema que está a enfrentar. No entanto se o barco não partir hoje, você volta logo cá!...

         - Muito obrigado meu sargento. Respondi já completamente aliviado. E dito isto saiu, deixando-me só com o furriel, que ficou completamente apático e de boca aberta.

         - Sim senhor, mas que bela representação. Eu não sei se é verdade ou mentira, mas de qualquer das maneiras tenho que te dar os parabéns. Vão lá 18 meses que lido aqui com o sargento e digo-te que nunca o vi perdoar nada a ninguém. É mau como as cobras e no teu caso ele acabou por te perdoar. Sim senhor, podes-te considerar um campeão, e mais uma vez os meus parabéns! O furriel era sem dúvida um gajo porreiro e eu despedi-me dele com agrado e simpatia.

         Voltei ao Hospital e depois de contar tudo ao Manaças, novamente me despedi dele e infelizmente até à data nunca mais o voltei a ver.

         Aqui há uns anos atrás, disseram-me que ele, quando regressou do Ultramar, tinha emigrado para a Alemanha e que por lá tinha fixado residência, lamentei mas paciência, pode ser que um dia tenha a felicidade de o encontrar.

         Voltei ao cais onde o "branco" encarregado do tráfego dos barcos me informou que o barco partia de certeza naquele dia.

         Fiquei mais descansado e dali já não arredei pé. Entretanto começou anoitecer e eu por ali cheio de fome, sem saber o que fazer à minha vida. 

         Fui falar com o encarregado e disse-lhe que tinha de ir jantar antes que morresse à fome. Suavizou o meu nervosismo dizendo que podia ir comer à vontade, porque o barco só partia lá para o fim da madrugada.

         Cheio de ansiedade e preocupação, fui comer à pressa, vindo logo de seguida direito ao cais, onde novamente me dirigi ao encarregado, que me disse para ir dormir no gabinete dele e para ficar descansado que quando o barco estivesse pronto, logo me acordava.

         Assim fiz. O gabinete era composto apenas por uma secretária e uma cadeira de madeira, já em avançado estado de degradação. A porta estava sempre aberta, voltada para o cais e eu passava horas a olhar o movimento que se fazia sentir cá fora.

         A primeira noite passou e tudo continuou na mesma: o barco, e eu também, completamente na merda.

         A segunda noite também passou, e eu cada vez mais sem saber o que fazer à minha vida. Contei a situação em que me encontrava ao encarregado e ele garantiu-me que na terceira noite era de certeza ... o barco ia mesmo partir para Jabadá

         A terceira noite chegou e mais uma vez me fiquei a dormir na secretária do encarregado, enquanto ele cá fora, dava ordens e mandava seguir os barcos, vindo de vez enquanto ter comigo para me sossegar, dizendo: 

         - Esta madrugada é de certeza. Pode dormir descansado que quando o barco estiver pronto eu chamo-o.

         Entravam pretos e saíam, alguns até me faziam perguntas confundindo-me com o encarregado.

         Eu ia dormindo em sobressaltos devido ao medo de vir a ter problemas por não me apresentar no quartel de Jabadá na data marcada na guia de marcha.

         Estávamos precisamente na manhã do dia 15 de Julho de 1969 e precisamente há dois dias atrás, ali mesmo naquele cais, tristemente, tinha completado os meus 22 anos, sozinho, triste e abandonado.

         De repente sou acordado com abanões por um nativo que me diz:

         - ‘’É pissoal, tu nun vai nos barco qui partiu no Jabáda’’!...

         Precipitadamente agarrei no saco que tinha aos meus pés e levando a cadeira de roda até a fazer cair, corri cá para fora ... e vi o barco ao largo já muito perto da pequena ilha onde eu desembarquei do "Uíge".

         - Filho da puta do branco. Pensei. 

         - Foi-se embora e esqueceu-se de mim, ou se calhar avisou o preto para me acordar e foi o "cabrão" que se esqueceu.

         Agora é que nem Deus me salva, estou deveras "refudido".  Sentei-me no cais, em cima de um ferro que servia para enrolar as cordas dos barcos que atracavam ... e mordi-me de raiva ao mesmo tempo que ia pensando como é que ia despir esta camisa de onze varas.

         Se volto aos Adidos o sargento de má-pinta, que no fundo até teve boa-pinta ... é mais que certo que me vai mandar prender!...

         Maldita a hora que eu vim para a consulta externa ... melhor tivesse ficado com a Huana e com a Danka, que mal eu me lesionei se preocuparam logo em ferver ervas que me aplicavam no ombro, e de certeza que me tinham recuperado.

         Faz hoje precisamente 27 dias que  sai de Jabadá e já vou morrendo de saudades de tudo o que por lá deixei.

         Tudo isto e muito mais ia pensando, com até que cheguei a um ponto em que a minha cabeça era uma confusão, chegando a bloquear todos os meus pensamentos.

         Esqueci-me do tempo que ia passando, não dando conta das horas, nem de nada que se passava à minha volta. Até por "corno" me fiz passar. E afinal não sei para quê. Agora o que me espera é ser "encanado".

         Distraído com os pensamentos, mal ouvia chamar por mim, quando de repente olhei para baixo e vejo o Salsicha a amarrar o barco da nossa Companhia ao mesmo tempo que gritava por mim. Nem quis acreditar e quando me refiz da surpresa até dei pulos de contente !

         O Salsicha foi um enviando muito especial, que Deus mandou em meu socorro para me salvar o pescoço.

         Ainda hoje penso como é que foi possível nunca me ter lembrado do Salsicha, uma vez que sabia que ele ia quase todos os dias a Bissau. Esse esquecimento podia-me ter saído muito caro ... felizmente que me safei, e isso é que foi importante.

         - Então Serra, o que é que fazes por aqui? Perguntou ele. Contei-lhe que tinha perdido o barco para Jabadá e ele disse:

         - Não tenhas problema que eu levo-te. Mas só vou ao meio-dia porque ainda tenho de dar umas voltas.

         - Está bem pá eu agradeço-te. E sendo assim aproveito e vou contigo, para ir comer qualquer coisa. Depois volto para junto do barco e fico à tua espera.

         Durante o percurso da viagem, o Salsicha foi-me pondo ao corrente de tudo o que se tinha passado no decorrer destes 27 dias em que eu estive ausente. Eu contente e satisfeito ia ouvindo tudo o que ele me ia contando, mas a minha preocupação era constante, porque enquanto não entregasse a guia não ficava descansado.

         Entretanto chegámos e desembarcámos quase despercebidamente, visto não se encontrar quase ninguém por ali.

         Fui-me apresentar ao capitão, que logo me perguntou se eu estava bom e operacional. Respondi que sim ao mesmo tempo que lhe entregava a guia.

         Deu uma vista de olhos e deu-ma novamente, dizendo-me para a ir entregar na secretaria ao sargento Taínha.

         O sargento por sua vez leu-a e só depois de deixar passar algum tempo é que disse que estava bem ... e eu pude finalmente respirar de alívio.

         Dirigi-me para o abrigo contente e satisfeito. O perigo de ser dado como desertor tinha passado.

         Quando cheguei, tive uma surpresa: a minha cama estava ocupada por outro e as minhas coisas estavam arrumadas junto aos cunhetes das munições. Perguntei o que tinha acontecido e o Deputado disse-me que o alferes Samaritano tinha dado ordem para quando eu regressasse mudar para o abrigo ‘’Saturno’’ ... fiquei lixado e furioso.

         Depois perguntei-lhe pelo meu macaco.

         Respondeu-me :

         - Desde que te foste embora, ele, talvez por sentir a tua falta, tem andado quase sempre fugido. De vez em quando aparece e como não te vê, logo volta a desaparecer.

         - Então e agora?

         Perguntei eu.

         - O Fiúza conseguiu apanhá-lo e levou-o com ele para o abrigo para onde tu vais também, ele cresceu muito e nós não o conseguíamos apanhar, porque o cabrão quer morder. O único a quem ele ainda vai obedecendo é ao Fiúza. Por isso ele tem-no lá preso, com uma coleira e uma correia.

         - Bom, sendo assim fico mais descansado.

         Respondi.

         - Então e quem mais saiu daqui perguntei? 

         - O Bartéló e o Fiúza. Vocês ficam os três juntos no mesmo abrigo.

         - Bom, sendo assim vou andando. Tenho saudades do "Nilo" e quero ver se ele ainda me vai obedecer, ou se também me quer morder.

         Conforme me fui aproximando vi logo o ‘’Nilo’’ preso a um mangueiro ... até parecia que já me esperava ...  e quando me viu ficou louco de alegria, dando pulos de contentamento.

         Soltei-o e peguei-o ao colo, ao mesmo tempo que me rolaram duas lágrimas de comoção perante tanto afecto e dedicação de um animal que eu insisti em que sobrevivesse.