SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

VOLTÁMOS  NOVAMENTE À  SERRA DA  CARREGUEIRA

 

        

 

a porta de armas até à carreira de tiro devia ser uma distância de 2 km. que nós percorríamos por uma estrada alcatroada.  Nesse dia quando seguíamos por essa estrada e já perto da carreira de tiro, vimos dois alferes que andavam à caça com a Manelica, eles a nós ignoraram-nos, mas reconheci um deles porque me tinha dado a instrução na recruta e até lixado alguns fins de semana, sempre a protesto de eu ter a barba mal feita, ou as botas mal engraxadas, o que me levava a concluir, que ele não ia à minha bola, mas como eu era perito em desenfianços, poucos ou nenhuns fins de semana lá passei.

         O quartel nessa altura encontrava-se quase deserto, pois tinham acabado de dar uma recruta e estavam à espera de novos instruendos, vai daí o motivo, dos dois alferes andarem com a Manelica, à caça dos passarinhos.

         Entretanto chegámos à carreira de tiro e o alferes Madureira começou a organizar-nos, dizendo : -- Tu és a seguir a fulano, tu a sicrano e assim sucessivamente, eu fiquei a seguir ao Álvaro.

         Íamos fazer tiro ao alvo, toda a nossa pontaria era anotada numa ficha e depois classificada. O alvo encontrava-se a uma certa distância e nós esperávamos a nossa vez debaixo de um telheiro, protegidos por uma forte parede de cimento armado, ali era impossível sermos alvejados por qualquer bala que fizesse ricochete. Chegada a nossa vez, deitávamo-nos no chão em cima de um estrado de madeira e através de uma vigia apontávamos ao alvo. Eu encontrava-me, esperando junto do Álvaro, quando de repente ele dá um grito de dor e tomba para cima de mim, caindo de seguida no chão com a barriga para cima, debrucei-me para ele e vi o sangue a jorrar, junto ao umbigo, como se fosse uma torneira. Comecei a gritar e imediatamente todos acorreram para o socorrer, entre eles o alferes Madureira que logo o ajudou a meter num Jipe, que de pronto e a toda a velocidade seguiu para o hospital, acompanhado do alferes Madureira que como humano que era, não deixou que um dos seus homens fosse ferido para o hospital, sem a sua protecção.

         Quando me recompus do trágico acidente, olhei à minha volta, na esperança de ver os alferes, mas deles nem sombras e reparei que na parte direita da estrada, havia uma barreira em rocha, com 4 ou 5 metros de altura, e pensei. « Isto foi obra dos alferes que andavam à caça dos passarinhos »  disso não tenho eu dúvidas, a bala fez ricochete na rocha e atingiu o Álvaro, como me podia ter atingido, que na altura estava colado a ele.

         Tendo-me dirigido às rochas reparei que, de facto, existiam dois riscos recentes que só poderiam ter sido feitos por ricochete de balas.

         Mordi-me de raiva por pensar que os autores de tal proeza iam ficar impunes sem que se fizesse justiça.

         Dado o acontecimento, pouco mais, ou mesmo nada fizemos. Ai de um recruta que se atrevesse a levantar quaisquer suspeitas sobre um oficial.  Regressámos portanto ao Regimento de Cav. 7 onde chegámos por volta do meio-dia. Almoçámos e por volta das 14 horas começámos a instrução que na altura foi comandada pelos furriéis do pelotão dada a ausência do alferes Madureira, que apareceu por volta das 16 horas, chamando-me de parte e dizendo-me:

         - Serra, temos bronca.

         Nós estávamos na carreira de tiro a disparar munições de calibre 7,63 e o Álvaro foi ferido por uma bala de calibre 22.      

         - Você conheceu algum daqueles alferes que andavam à caça com a Manelica?

         - Respondi:

         - Sim meu alferes conheci o mais alto, porque foi ele próprio que me deu a instrução na recruta.

         - Ele respondeu:

         - certo, porque de todos estes homens, só você o podia conhecer, porque foi você o único que tirou lá a recruta com o batalhão que foi para Angola. Sabe o nome dele?

         - Respondi que:

         - Sim, todo completo.

         -- Então venha comigo ao Comando, porque vai-se mover um processo contra esses dois alferes.

         Enquanto caminhávamos perguntei-lhe pelo estado do Álvaro, disse-me que já tinha sido operado e já lhe tinham extraído a bala e que os médicos disseram que estava fora de perigo. Por esse motivo e por pensar que se iria fazer justiça, fiquei bastante satisfeito.

         Se os tais alferes algum dia lerem este livro, hão-de lembrar-se bem, da merda que fizeram com a caça aos passarinhos.