SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
NINGUÉM CONSEGUIU DORMIR DEBAIXO DA PONTE
ia 27 pelas 20 horas, já noite escura, atingimos a Barra de Cascais. O Uíge, a partir daí veio lentamente a navegar nas doces e cálidas águas do Tejo, para se fixar debaixo da ponte às 21 horas, a pouca distância do Cais da Rocha onde nós iríamos desembarcar 12 horas mais tarde.
A essa hora já o cais abarrotava de familiares e amigos, que gritavam loucos de alegria ansiosos por nos abraçarem.
Nós mantínhamo‑nos calmos e serenos, a assistir ao fabuloso espectáculo, dos gritos e das pessoas que cada vez mais se aglomeravam no cais sem termos noção do tempo, nem das horas que iam passando.
Até que por volta das 9 horas da manhã, veio um rebocador que puxou o navio até ao cais.
Despedi‑me do comandante Brito com um grande abraço, agradecendo‑lhe tudo quanto fez por mim e desejando‑lhe as maiores felicidades.
O pessoal calmamente ia deixando o navio, sem pressas nem atropelos. Eu não fui excepção e acabei por ser dos últimos a sair.
Sendo por esse facto mais fácil de avistar pela minha família, que já se encontrava aflita pensando o pior. Só que mil e oitocentos homens não podiam deixar o navio todos ao mesmo tempo e alguém teve de ficar para último.
Ali mesmo, naquele cais praticamente há dois anos atrás, tinha vivido o dia mais triste da minha vida. Quis o destino que graças a Deus ali voltasse para voltar a viver, mas desta vez, o dia mais feliz da minha vida.
Fui abraçado e quase devorado pela família, principalmente pela minha mulher que não se cansava de me beijar e apertar. Os meus filhos estavam lindos o Jorge Carlos já com quatro anos e meio apertava‑me o pescoço e beijáva‑me louco de alegria. O José Manuel que já contava dois anos e meio, como só me conhecia através de fotografias, fugia de mim aterrorizado, como se eu fosse um papão que o quisesse devorar, ou possivelmente com medo da farda, ou de mim.
A minha mulher extasiava de alegria, assim como toda a família, que não escondiam o contentamento e a enorme felicidade de me terem de volta.
Vi e abracei o Augusto, que forçosamente ali se encontrava para seguir connosco para Estremoz a fim de fazer o espólio, porque a isso era obrigado, e só quando o Batalhão regressasse o podia fazer. Disse-nos que para ele foi uma grande alegria ver o nosso desembarque, e ao mesmo tempo voltar a rever a maioria daqueles que com ele combateram e sofreram.
Depois, disse tristemente:
- A sorte para mim foi madrasta, porque logo no início me assinalou, marcando‑me profundamente ao deixar‑me sem uma perna. Daria anos da minha vida para ter voltado como vocês, mas infelizmente o destino não quis assim.
Já perto do meio‑dia falaram aos alti‑falantes, dizendo para irmos desfilar. E todos os que nos encontrávamos com o Augusto nos despedimos com um grande abraço, desejando‑lhe sorte e felicidades, e até hoje passados 29 anos, nunca mais o voltei a ver, embora soubesse que na altura morava em Queluz.
Os outros correram a formar e eu corri novamente para junto da família. No meio da imensa multidão até passei despercebido.
Acabado o desfile, disseram que tínhamos dez minutos para nos despedirmos e entrarmos nos autocarros da empresa Candido Belo que nos iriam transportar até Estremoz.
A minha mulher deu‑me um saco com a minha roupa à civil que eu finalmente ia trocar pela militar e eu entreguei‑lhe a mala de cartão, que continha todas as recordações que eu trouxe da Guiné.
Parti para Estremoz e a minha família partiu em peso para casa dos meus pais na Pontinha, a fim de almoçarem e esperarem por mim, para a grande festa do jantar.
Chegados a Estremoz os autocarros pararam na enorme praça, e conforme íamos saindo mandavam‑nos formar, para que depois desfilasse-mos, dando uma volta à praça até entrarmos no quartel.
Como em todo o tempo de tropa fui perito em desenfianços, como quem não quer a coisa escapei‑me sorrateiramente e enquanto desfilaram fui comprar um par de sapatos.
Quando entrei no quartel, já lá se encontravam os meus grandes amigos Francisco "Chico da Carne" e João "João Pastor", com quem eu troquei correspondência durante o tempo que estive na Guiné.
Depois de nos abraçarmos convidaram‑me para ir a casa deles, a fim de cumprimentar a família. Mas infelizmente só houve tempo para cumprimentar a dona Noémia, esposa do sr. Francisco e os dois filhos ainda pequenos, porque assim que fiz o espólio, juntei‑me com mais três companheiros e alugámos um táxi que rapidamente nos trouxe a Lisboa.