SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O ADEUS

 

        

 

urante os restantes oito dias, saímos três ou quatro vezes para o mato, acompanhados dos nossos substitutos. Com o propósito de lhes ensinarmos a melhor maneira de andar no mato, e sobretudo alertando-os dos perigos que podiam surgir a cada passo que dávamos, principalmente as malditas minas. Ensinámos-lhes tudo o que praticamente tínhamos ensinado aos pára-quedistas.

         Eles acabaram por ter mais sorte que nós, porque os "Velhinhos" que nós viemos render partiram logo de seguida nos mesmos barcos que nós viemos, deixando‑nos completamente desprotegidos, sem experiência nenhuma e entregues aos bichos. E mal os barcos se começaram afastar o inimigo nem nos deu tempo para respirar, bombardeado‑nos intensa e ferozmente, até chegarmos ao ponto de entortarmos e quase derretermos os canos das armas.

         Mas com eles não ia acontecer o mesmo, porque estavam bem instruídos e sabiam bem como se haviam de defender. Só que o inimigo como era esperto e astuto, agora mantinha‑se ausente, esperando que nós velhinhos partíssemos, para depois lançarem o pânico sobre os inexperientes periquitos. Mas talvez tivessem azar e lhes saísse o tiro pela culatra, porque os novatos não eram parvos nenhuns.

         O dia da despedida aproximava‑se e eu aproveitava todos os momentos livres para estar principalmente junto da Quintas, embora também passasse algumas horas com a Huana e a Danka.

         No dia 7 da parte da tarde, fui à cantina e comprei algumas lembranças para lhes oferecer, igualmente para os pais da Quintas, para o Champion e também para o Cigano.

         Depois, juntamente com as fotografias que tinha tirado com elas, os amuletos, o cinto e a pulseira que eu usei durante toda a campanha, peguei em tudo e tristemente lhes fui entregar. Fiquei assim desprovido de qualquer recordação daquela boa gente que me amou e admirou, e que eu igualmente soube amar e respeitar, com dedicação e fraternidade.

         Hoje sinto‑me arrependido, pelo facto de nem sequer possuir uma simples recordação daquelas mulheres maravilhosas, que me amaram e adoram, e que tanto fizeram por mim, simplesmente a troco do amor que eu lhes dedicava.

         Encontrei mais tarde misturada com outras fotografias que trouxe, uma de pouco interesse, onde se encontra a Quintas comigo a tirar água de um poço. As de maior interesse ficaram com ela ... por eu recear vir a ter problemas com a minha mulher.

         Hoje, infelizmente reconheço que foi uma grande cobardia da minha parte, mas paciência, o mal foi feito e já não se pode remediar, no entanto enquanto há vida há esperança e eu não hei‑de morrer sem voltar à Guiné.

         Entretanto o capitão Capucho mandou‑nos formar na parada e disse‑nos que os batelões chegavam no dia seguinte, por volta das dez horas, portanto queria o pessoal todo no cais por volta das nove.

         Depois pediu‑nos para evitarmos grandes alaridos ou alegrias e sobretudo que mostrasse-mos à população que partíamos tristes por termos de os deixar.

         No dia seguinte mal o dia começou a clarear, corri para junto da Quintas, e já a encontrei sentada num banco debaixo do alpendre da Tabanca.

         Quando me viu limpou os olhos e tristemente abraçou‑se a mim.  Os pais já se preparavam para sair para a bolanha, eu com os olhos rasos de água, abracei‑me a eles e dolorosamente me despedi.

         Depois de saírem voltei a abraçar a Quintas, e por ali ficámos apertados e a chorar silenciosamente. Até que a hora se aproximou e viemos para cima e juntos fomos à tabanca do Champion para me despedir, tanto dele, como da Huana, da Danka e das restantes mulheres.

         A Huana não se conteve e abraçou‑se a mim a chorar, assim como também a Danka, que não resistiu e procedeu de igual modo.

         Depois de dar um grande abraço ao meu grande amigo Champion, a Huana disse-me que vinham todos ao cais para me verem partir.

         Eu disse‑lhes para seguirem que ia ao abrigo com a Quintas buscar os sacos e que depois nos encontrávamos todos lá.

         Já no abrigo despedi‑me do pessoal, desejando‑lhes sorte e felicidades. Depois, comovidamente e com as lágrimas nos olhos, abracei‑me aos dois humildes e bons amigos: Eusébio e Dante, miúdos estes que nos e acompanharam fielmente até ao fim.

         Feitas as despedidas, vim para cima abraçado com a Quintas, com a arma e o cinturão com as cartucheiras ao ombro, enquanto o Dante e o Eusébio, me carregavam os sacos e uma mala de cartão cinzenta, que o Exército Português tão generosamente nos ofereceu.

         Quando chegámos ao cais já os batelões estavam a atracar e pouco mais de quinze minutos tivemos para dizer o último adeus.

         Hoje, ainda recordo triste e nitidamente a imagem da Quintas na parte de cima do cais, completamente sozinha a acenar‑me com o lenço e com as mãos. Imagem essa, que eu gravei para todo o sempre no fundo do meu coração.