SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O MEU AMIGO JOTA-RUSSO

 

        

 

ui destacado temporariamente para o abrigo Naulila. Uma vez que esse abrigo se encontrava apenas com cinco elementos por motivo de dois camaradas se encontrarem na enfermaria com o paludismo.

         Lá estava o meu amigo Jota-Russo, que tal como eu pertencia ao 4.º pelotão. Foi durante muito tempo o municiador do Cuxixo, e quando saíamos para o mato ele levava sempre às costas duas, e por vezes quatro granadas de bazuca presas com uma correia pela cabeça, que no caso de ser necessário abrir fogo era ele que as colocava no cano da bazuca que o Cuxixo mantinha às costas a fazer pontaria, e depois de a granada ligada com os fios pelo municiador o Cuxixo disparava em direcção ao objectivo. E raramente falhava.

         O Jota-Russo era alto e de bom porte fisico. Sereno, calmo e alegre. Conviver com ele era o mesmo que dissipar a tristeza.

         Era natural do Rosário (Moita do Ribatejo), onde exercia a sua profissão de pescador independente mais na pesca de enguias. Trabalhava por conta própria, só ele e o seu pequeno barco, e penso que actualmente se mantém na mesma forma.

         Tinha uma cultura bastante sólida e um elevado grau de inteligência. Pouco dado a intrigas ou a exaltações, sabia-se comportar excepcionalmente com quem convivia, motivo pelo qual todos nós sentíamos admiração por ele.

         Bom combatente, concentrado e afoito. Mesmo debaixo de fogo sabia conservar a calma e o sangue frio nunca se deixando desorientar. O que para nós era uma motivação uma vez que tentávamos proceder como ele.

         Lá estava também o Borlinha (poeta) que era natural de Elvas. O Borlinha tinha o dom de fazer bonitas quadras e poemas que nós muito apreciávamos.

         Foi com ele que eu sem saber descobri que afinal também tinha veia poética.

         E hoje graças ao que aprendi com o Borlinha tenho uma boa colecção de quadras, poemas e canções. Tudo composto por mim e há anos, guardados no fundo da gaveta.

         Lá estavam também o Casímiro, o Fuinha e o João (Joe Canibal). Todos excepcionalmente bons camaradas.

         Quero só referenciar o Joe Canibal pelo facto de ele ser um pouco desleixado e nunca querer limpar e lubrificar a arma.

         Nós por diversas vezes desmontávamos, limpávamos e lubrificávamos as armas.

         Acontece que o João nunca se queria dar a esse trabalho. E nós dizíamos-lhe:

         - João limpa a arma. Se um dia tens o azar de cair debaixo de fogo e ela se encrava nós depois queremos ver como é que te desenrascas.

         Ele respondia:

         - Oh isso para mim é canja. Vou-me a eles e como-os todos à dentada. Como os turras, e os cubanos. Devoro-os todos em menos de nada.

         Vai dai a alcunha de Joe Canibal, que no fundo ele até nem discordava.

         Mas no que diz respeito a devorar, o que ele devorava mais depressa eram os frangos assados na brasa que roubávamos aos pretos.

         Estávamos em pleno Verão. A seca dominava tudo e os pretos como por esta altura tinham arroz em abundância recusavam-se a vender as galinhas.

         Por este motivo. Eu, o Jota-Russo e o Joe Canibal pensámos em lhes roubar algumas.

         Para o efeito arranjámos uma lata dos cunhetes de munições que colocámos em frente ao abrigo inclinada com um pau a servir de base de apoio ficando assim a parte da frente levantada. Em cima da lata metíamos um bloco de terra, e no pau que suportava todo o peso atámos um cordel que puxávamos à distância quando a galinha se encontrava debaixo da lata a beber água ou a comer arroz, que para o efeito enterrávamos uma tigela cheia de água e espalhávamos alguns bagos de arroz à volta como chamariz.

         Utilizávamos o mesmo método para apanhar pássaros, por ser mais fácil e eficaz do que com a rede.

         Logo pela manhã ficávamos atentos à espera que as galinhas viessem sedentas das tabancas e entrassem no recinto do abrigo à procura de água.

         Mal caíam na armadilha, nós à espreita na parte de dentro do abrigo puxávamos o cordel e logo de seguida corríamos com a capa de lona camuflada e enrolávamos, lata galinha e tudo. Excepto o bloco de terra.

         Já dentro do abrigo com a faca de mato. Zás, tirávamos-lhe o piar.

         Depois já combinados com o Aviador que se encontrava num outro abrigo bem distante. Metíamos as galinhas num saco de lona e íamos entregar-lhas para que ele as preparasse e assasse e na hora combinada deslocávamo-nos para lá três de cada vez para não dar nas vistas, e assim saborearmos o delicioso churrasco.

         O sistema resultou durante alguns dias em que actuámos descompassadamente, e que dava sempre para limpar uma, duas ou três galinhas no máximo.

         Até que tivemos de parar porque os gajos já andavam desconfiados, e quando davam por falta de algum bico vinham logo direitos ao abrigo e perguntavam:

         - Scherno tu cá jubila nhéco di mim. (nhéco - galinha)

Ao que eu respondia.

         - Mim cá jubila nada teu nhéco.

         Assim como perguntavam a mim perguntavam também aos outros. Não tivemos outra alternativa se não desistir antes que houvesse bronca.

         Vou agora dedicar algumas palavras ao Aviador que era um autêntico compincha e danado para a brincadeira. Natural do Algarve (Vila Real de Santo António). Especialista em preparar frangos que assava lentamente ao mesmo tempo que os ia barrando com manteiga misturada com jindungo e limão, que aquecia num copo de inox e depois com um pincel ia besuntando.

         Havia nele outra faceta bastante divertida que nos fazia rir até às lágrimas.

         Tinha os dois dentes superiores da frente postiços que com bastante prática e humor tirava com a língua, ao mesmo tempo que ficava desdentado.

         Isso para nós era banal, mas o mesmo não acontecia com os pretos que quando o viam tirar e colocar os dentes com a língua desatavam a fugir e a gritar como se vissem o feiticeiro da tribo que era feio como o caraças. O que não era o caso do Aviador.

         Recordo de uma tarde em que ele apareceu lá no abrigo e depois de entrar me veio chamar cá fora dizendo que estavam dois lagartos a fornicar na minha cama.

         Levei o caso para a brincadeira, ri-me e não liguei. Mas ele insistiu e de facto havia mesmo um casal de lagartos na minha cama.

         Ele não perdeu tempo e tirou logo um ferro da cama ao lado, e eu de seguida fiz o mesmo e juntos demos cabo da vida aos pobres dos lagartos, o que não foi fácil porque se assanharam mas acabaram por não resistir aos ferros da cama.

         O Aviador foi um dos muitos que me deixaram imensas saudades e muito boas recordações que não esquecem mais.

         Pelos bons e maus momentos que passámos desejo-te muitas felicidades grande amigo Aviador.