SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

A GALINHA VOADORA

 

        

 

uando chegámos ao abrigo já o Morcela tinha posto a cabra a pastar num sítio escondido e o pessoal esfregava as mãos, pensando no petisco que íamos ter ao jantar.

         Tomei banho, mudei de roupa e vim ao Comando com os miúdos buscar o almoço e ao mesmo tempo para ver se alguém comentava o desvio que fizemos aos animais, mas felizmente não se ouviam comentários, o que para nós foi um alívio.

         A seguir ao almoço viemos há cantina comprar duas grades de cervejas e duas garrafas de whisky. Com o acordo de todos fui depois convidar o Fernando, o Atamã e o Pantaleão. Os outros seriam convidados mais tarde, quando matássemos a cabra.  Aceitaram o convite de bom grado, mas só havia um problema, é que tinham ido com o Chaparro apanhar rãs e o petisco estava combinado com ele para a tarde. Respondi‑lhes que não havia problema e que nesse caso levassem o Chaparro também. Concordaram dizendo que ainda iam ao viveiro buscar ostras para petiscarmos de tarde e que iam trazer também uma parte das coxas de Rã.

         Disse aos outros que lamentava não podermos confraternizar todos juntos, mas que isso era impossível, porque o abrigo não podia ficar abandonado.

         Depois saí dizendo que ficava para a próxima, quando matasse-mos a cabra.

         Quando voltei ao Beira‑Mar pedi ao Aleixo para acender a fogueira e aquecer água para depenarmos as galinhas, que eu próprio ia matar e ele prontamente começou, com os miúdos a atear o fogo.

         Peguei na galinha que o Mosca tinha trazido, que era maior que a minha e disse ao Carôlo para me ajudar. Ele segurou na galinha, eu estiquei‑lhe o pescoço em cima de uma canoa, depois com a faca de mato, zás!... De um só golpe separei‑lhe a cabeça.

         Os nativos, que se encontravam ali perto, desataram a rir, e a gritar pela maneira como eu matei a galinha. Eu agarrei nela e na brincadeira mandei‑a pelo ar na direcção deles que, quando a viram a voar sem cabeça direita a eles, fugiram pensando que era feitiço.

         Só que a brincadeira saiu‑me cara, porque a puta tinha mais vidas que um gato e mesmo sem cabeça, deu a volta e voou na direcção do rio, acabando por cair dentro de água sendo rapidamente  levada pela forte corrente.

         Ninguém se habilitou a fazer‑se à água e eu muito menos, porque gato escaldado de água fria tem medo.

         O pessoal ria‑se até não poder mais, só que eu perdi a vontade de o fazer. Mas não me atrapalhei e fui à tabanca do Champion. Depois de me dizer que tinha poucas e que estavam todas a pôr ovos, por esse motivo não queria vender, mas como era para mim, não tinha coragem de dizer que não. Lá trouxe a galinha que era grande e pesada, e paguei‑lhe 20$00, que era o dobro do que ela valia.

         Depois de matarmos e depenarmos as galinhas, cortámo‑las aos bocados, e colocámos no tacho juntamente com o tempero.  Depois, à noite, na fogueira, era só guisar e fritar batatas.

         Entretanto chegaram os convidados e sem perdermos tempo, sentámo‑nos à volta da fogueira, cada qual com a sua navalha.        Pegávamos num pau carregado de ostras, que aquecíamos ao lume até abrirem, para depois as extraíamos da casca com a ponta da navalha, e por fim as comermos ... bem regadas com cerveja Sagres Export Beer.

         A cerveja começou a desaparecer, ainda tínhamos as coxas de rã e as galinhas para mais tarde, só que a bebida não ia chegar.

         De maneira que concordámos todos em comprar mais um garrafão de vinho de 10 litros, que custava 90$00. Dividido por todos, era uma ninharia a cada um. 

         Enquanto os outros ficaram a preparar o jantar, vim eu e o Mosca, comprar o vinho à cantina civil.

         Quando chegámos, já tinha ido o Carôlo com os miúdos ao quartel buscar o jantar, que era bacalhau guisado com batata à cambalhota.

         Como ninguém quis demos aos miúdos para levarem para a família.

         O petisco estava pronto e nós começámos a comer e a beber animadamente.

         As horas foram passando e de repente estávamos quase todos bêbados. A noite já ia longe quando os convidados, com muita pena nossa, acabaram por se ir embora, depois de beberem mais uns whiskys.

         Entrámos no abrigo, excepto o Aleixo "grão de bico", que ficou cá fora de sentinela. Continuámos a beber, até que eu comecei a cantar e eles a baterem copos e pratos.

         A festa prosseguia animada, quando de repente o abrigo estremeceu, com os rebentamentos das granadas do inimigo.

         Eu saí a gritar de alegria, de tão bêbado que estava! Para nós era uma grande alegria sermos atacados. Quebrava‑nos a tensão e ficávamos mais calmos. Gostávamos do fogo de artifício mais especialmente dos very‑lights, e de ver as granadas a rebentar no ar, espalhando os estilhaços incandescentes, lembrando um enorme chapéu.

         Uma granada, porém, rebentou perto de mim, que me fez levantar os pés do chão. O kiko que tinha na cabeça voou para longe, e só o encontrei no dia seguinte, ao mesmo tempo que uma canoa, que se encontrava na margem do rio, voou igualmente a uma altura de 5 ou 6 metros. O sopro que a granada provocou ao explodir foi tão grande, que me fez instantaneamente passar a bebedeira. E dei graças a Deus por não ter sido atingido por nenhum estilhaço.

         A canoa veio cair à frente do abrigo, partida e repleta de buracos de estilhaços.

         Esta bebedeira podia‑me ter saído muito cara, mas felizmente foi só um aviso, tudo acabou em bem e hoje posso recordar e dizer que foi ... uma memorável bebedeira.