SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
QUEM QUER COME... QUEM NÃO QUER PASSA FOME
urante dias a fio comíamos toucinho com arroz ao almoço, e arroz com toucinho ao jantar.
Nós revoltávamo-nos mas em vão, assim como também o cozinheiro Abadêsso, rapaz de grande personalidade, e grande defensor da nossa causa, vendo que aquilo não era comida que se apresentasse aos soldados, começou a exigir do sargento Taínha, e do furriel Gavião (vago mestre), melhores géneros alimentícios. Mas sem resultado porque a comida continuava praticamente na mesma.
Até que passados alguns tempos começou a melhorar significativamente ... e essa mudança ficou a dever-se ao alferes Souto França 2.º comandante da companhia e homem de H grande, que se preocupou intensivamente com o melhorar do rancho dos soldados, chegando ao ponto de mandar comprar livros de receitas de culinária, pagas do seu próprio bolso.
Esforçou-se incansavelmente, intercedendo perante os serviços de manutenção em Bissau, para que nos fossem mandados géneros alimentícios frescos, tais como legumes para a sopa, frangos, carne de vaca, sardinhas congeladas, pimentos, ananases, bananas etc. Passando a controlar também, e sempre que podia, a arrecadação dos géneros alimentícios, cujo chefe era o furriel Gavião.
O alferes Souto França era um homem excepcional, inteligente em todos os aspectos, que sabia ordenar sem tirania e que sabia ser obedecido sem servilismos.
Homem de estatura mediana, com olhos e cabelos castanhos, calmo e alegre, com o sorriso sempre estampado no rosto. Sorriso esse que nas horas difíceis nos contagiava, transmitindo-nos paz e segurança interior.
Na vida civil era professor e campeão de Judo ao mesmo tempo que estudava psicologia com aproveitamento significativo. Hoje recordando a pessoa que ele era naquele tempo, perspicaz e inteligente. Não tenho dúvida de que o alferes Souto será um prestigiado Doutor do nosso País.
Na vida militar tinha a especialidade de Operações Especiais, tirada em Lamego. Era afoito e destemido para a guerra. Ele e o furriel Rui Cervantes tinham a mesma especialidade e eram os dois que mais se destacavam em toda a Companhia, devido aos seus factos e feitos. Os dois juntos infiltravam-se pela selva, fazendo golpes de mão e reconhecimentos, com uma subtileza de bradar aos céus e sem medo de serem capturados pelo inimigo.
Nestas loucas e arriscadas aventuras alinhavam só e unicamente os dois, porque só eles estavam aptos e treinados para se exporem a tais perigos ... que nós soldados considerávamos de grande heroísmo e afoiteza, levando-nos a sentir por eles o maior respeito e admiração.
O alferes Souto França era uma lenda viva. Os soldados do seu pelotão contaram-me que certa vez, quando estavam destacados a dar apoio a uma Companhia da área de Nova Lamego, depois de um feroz ataque dos turras, ele foi atrás deles, de noite e sozinho.
Apareceu dois dias depois, todo esfarrapado, cheio de fome e de sede, informando o comandante da companhia sobre o local onde os turras estavam acampados. Saíram imediatamente duas companhias, conseguindo cercá-los e fazer vários prisioneiros.
O furriel Rui Cervantes, na vida civil, era professor de karaté. Era alto e de bom porte atlético, todo ele bem musculado, com cabelos castanhos e olhos verdes claros, ágil como uma pantera, sociável e amigo do seu semelhante. Bom chefe e bom conselheiro, sem preconceitos ou vaidades, tal como o seu companheiro de especialidade alferes Souto França. Eram simplesmente perfeitos na relação social e compreensiva que sabiam manter com os soldados.
Inclusivamente o furriel Cervantes até deu uma ajuda como pedreiro na construção de uma escola, onde alinhámos: o Trôlha (mestre), eu, o Coina e o Bartéló, sob a orientação e ajuda do furriel Rui Cervantes, que depois da escola construída mexeu toda a sua influência para a pôr a funcionar com um professor Guineense que veio de Bissau.
O alferes Souto França e o furriel Cervantes arranjaram também maneira de que as mesas e cadeiras fossem dadas pela Companhia, conseguindo que livrarias e casas editoras da Metrópole oferecessem os livros, cadernos, lápis e canetas.
A escola teve grande afluência e aceitação por parte da maioria da população, que mostrava grande interesse e dedicação em aprender a ler e a escrever o Português.
Ambos estiveram envolvidos também na formação e instrução da célebre 1.ª Companhia de Comandos Africanos, tendo estado envolvidos na preparação da operação que resgatou de Conakry os portugueses que lá estavam prisioneiros há anos.
Fiz esta referência ao furriel Rui Cervantes e ao alferes Souto França, sem menosprezar os restantes oficiais, sargentos e praças da Companhia, especialmente os alferes Hortas e Piri-Piri, com quem tive um relacionamento de franca e pura amizade, pelo facto de serem dois homens simples e humanos, sem a menor arrogância, que comecei a admirar logo em Estremoz.
Quando por exemplo alguém me cortava o fim de semana, por castigo ou por embirrice. Eles se por acaso estivessem de Oficial de Dia deixavam-me ir para Lisboa sem passaporte, ficando com o meu nome e o n.º de soldado, para não me chamarem na formatura, uma vez que eu estava ausente. Assim me facilitavam a vida, para eu poder passar esses dois dias com a família correndo eles o risco de no caso de eu ser apanhado pela Polícia Militar serem castigados também, o que aliás quase chegou a acontecer.
Numa dessas sextas-feiras, quando saí do autocarro em Sapadores por volta da meia-noite, a Polícia Militar encontrava-se ali à coca junto do jipe.
Saí do autocarro carreira 12 que tinha apanhado em Alcântara, onde saí da camioneta que me trouxe de Estremoz.
Conforme saí olhei para eles denunciando-me. Eles de imediato me chamaram:
- É militar chegue aqui!
É o chegas ... pernas para que te quero ... e vai de correr à frente da Polícia.
Eles rapidamente se meteram no jipe e seguiram no meu encalço, mas o tempo que levaram a contornar e a voltar para baixo, foi talvez a minha salvação, dando-me tempo de entrar na rua em frente ao quartel que pertencia ao Batalhão de Transmissões, a Rua Senhora da Glória. E enfiei-me num pátio, logo ao princípio do lado direito, onde me escondi, deixando-os completamente despistados e à toa.
Por ali me mantive até deixar passar o perigo. Não ganhei para o susto e só descansei quando me apanhei em casa.
A partir desse dia passei a andar sempre à civil e com a farda dentro de um saco, sempre que ia para lá ou vinha para cá, trocava de roupa na casa de banho de um café em Estremoz. E desta forma acabaram-se os sustos e os sobressaltos.
Quando ao domingo chegava há caserna em Estremoz, os alferes Hortas ou Piri-piri, consoante o que estivesse de serviço, vinham logo ter comigo a perguntar se tudo tinha corrido bem. Só assim sossegavam e deixavam de estar preocupados.
Foram dois grandes amigos ... que eu hoje recordo com saudade.
Não posso deixar de recordar também o 2,º sargento Matias pelo seu grande sentido de humanidade, e a relação de amizade que manteve ao longo de dois anos com todos nós. Foi sem dúvida um homem excepcional em todos os aspectos que conquistou toda a nossa admiração ... Bem haja 2.º sargento Matias.
E por último o alferes Oliva Samaritano que foi o meu maior amigo e um dos mais destemidos oficiais de toda a companhia que soube comandar o 4.º pelotão com inteligência, coragem e valentia.
A ele ficámos a dever muito do que por lá aprendemos e em parte as nossas vidas. Depois de tanto amargar no duro tornou-se um homem simpático e cheio de humor, conservando sempre o seu heroísmo e sangue frio.
Por fim, quando encontrávamos alguma mina, ele não a deixava desmontar: dizia que o risco era grande e nós já estávamos fartos de sofrer tomava ele próprio a decisão de a rebentar por um método simples e eficaz embora com alguns riscos.
Quando acontecia ter de rebentar alguma mina ele mandava-nos afastar e proteger e só depois sinalizava o ponto onde se encontrava com algumas palhas que colocava em cima.
Tirava a cavilha de uma granada de sopro (trotil) e depois de andar alguns metros para trás desatava a correr e largava a granada em cima que por simpatia rebentava a mina instantaneamente.
Lembro-me que num destes arriscados exercícios ele devia ter calculado mal o tempo que a granada levava a rebentar (quatro segundos) e mal a largou em cima da mina a explosão foi imediata ao mesmo tempo que ele foi projectado pelos ares a uma altura bastante considerável e nós por momentos até tivemos a sensação de ver um anjo sem asas a voar na enorme nuvem de poeira que o rebentamento provocou.
Não sabíamos se havíamos de rir ou pensar o pior, mas felizmente ele, quando caiu no solo aos trambolhões imediatamente se levantou dizendo:
- ‘’Porra’’, mas ‘’ca granda voo’’ até parecia que ganhei asas.
A malta ria até às lágrimas enquanto ele olhava o dedo mindinho da mão direita ferido e a sangrar.
Quando chegámos ao aquartelamento ele foi fazer o curativo e nós demos-lhe a volta dizendo que pelo facto de a mina lhe ter causado só aquele pequeno ferimento até nos devia pagar umas cervejas.
Respondeu que estava teso porque o dinheiro tinha-o na Metrópole.
Depois de alguma insistência disse a sorrir:
- Está bem vão lá beber que depois mando vir dinheiro para pagar a despesa.
O que chegou a acontecer por diversas vezes, porque sempre que as emboscadas no mato nos corriam bem ele no regresso pagava-nos sempre umas cervejas embora dissesse sempre que não tinha dinheiro.
Era generoso e amigo da população. Vi-o muitas vezes no meio das tabancas a distribuir bolachas e latas de leite pelas crianças que ele sem dúvida adorava e sofria com a miséria que as rodeava.
Dedicava-se com empenho e de alma e coração a ensinar na escola, tanto crianças como adultos, a ler e escrever, com livros cadernos e lápis que ele próprio oferecia. Vivia entusiasmado com o que fazia a troco de nada, dizia-se feliz por poder ajudar aquele povo humilde e inculto, distribuindo amor e cultura.
Reconhecidamente te digo alferes Oliva: foste o maior e tenho a certeza que os homens que soubeste comandar do 4.º pelotão jamais te esquecerão.