SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

MAIS DUAS BAIXAS

 

        

 

aíamos todos os dias, normalmente por volta das catorze horas, para fazermos o reconhecimento da mata.

         Como o calor era intenso e queimava-nos até às entranhas, esse percurso nunca durava mais de quatro horas.

         Numa dessas saídas o Carriço ofereceu-se como voluntário para ir connosco. Só que teve azar. Aliás, como a maioria daqueles que se ofereciam como voluntários para o mato. Tinham quase sempre azar. Já o Simões, em Tite, se tinha oferecido como voluntário e acabou por ter azar e ficar sem uma perna.

         Prosseguíamos, embrenhados na mata, que já conhecíamos tal e qual a palma das nossas mãos. De vez em quando, deparavam-se as picadas, que tínhamos de atravessar saltando-as com o máximo de atenção, não fosse o diabo tecê-las e termos o azar de estar colocada uma mina no sítio onde fossemos meter o pé. Portanto como experientes que éramos, já conhecíamos bem o caminho que pisávamos.

         Só que o Carriço até nos deu a impressão que não era tão experiente e em vez  de saltar a picada meteu-lhe o pé em cima tendo o azar de nesse sítio estar uma mina, que logo explodiu, ficando assim marcado para toda a vida...sem uma perna ... e em Setúbal com dois filhos pequeninos para criar.

         O destino já o tinha marcado, ou o destino, ou a calanzisse de não querer esticar a perna.

         Passados três dias saímos logo pelas oito horas da manhã e o Pedro milícia tropeçou num fio de pesca de uma "mina bailarina". Sacudiu o pé sem se aperceber do perigo que o espreitava, até que a mina explodiu, com o mecanismo avariado, devido à ferrugem, desfazendo-lhe uma perna. Caso contrário, se o mecanismo tivesse funcionado a 100%, não teria sido a perna mas sim a cabeça, porque quando ele tropeçou no fio, a mina automaticamente teria subido à altura da cabeça e só então explodia, mandando-o para os anjinhos.

         O Pedro veio para Lisboa fazer os curativos e depois foi para a Alemanha, de onde saiu já com a prótese.

         Os direitos eram iguais, tanto para brancos, milícias, população e até para os próprios ‘’turras’’ que pisavam as suas minas ... eram igualmente bem tratados.

         Em 1972 já livre da guerra, recebi uma carta do Pedro, onde me dizia que estava internado no Hospital Militar Anexo : R. Artilharia-1, para mudar a prótese.

         O Pedro era esperto e inteligente e esforçou-se por aprender a ler e a escrever o Português.

         Dizia na carta que já tinha escrito para casa de outros e que não tinha obtido resposta e até à data ninguém tinha aparecido.

         Fui visitá-lo e encontrei-o muito desanimado. Disse-me que se sentia muito triste e sozinho por não conhecer ninguém.

         Animei-o e trouxe-o para minha casa, para passar os sábados e os domingos.

         Durante os outros dias da semana, a minha mulher, a minha mãe, a minha irmã Helena e a minha tia Eduarda iam visitá-lo.

         E assim o tentámos fazer feliz, durante os dois meses e meio que ele por cá permaneceu.

         Até que partiu novamente para a Guiné e até à data ... passados que foram vinte e oito anos, nada mais soube dele.