SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
OS FUGITIVOS
uma outra noite em que nos mantínhamos emboscados, tudo estava calmo e silencioso, levando-nos a acreditar que iríamos ter paz e sossego. Mas ... deviam de ser talvez 23 h 30, quando a 200 metros de nós, pouco mais ou menos, o inimigo começou a atacar o quartel.
Passaram ao largo sem que nós déssemos conta disso e para nossa grande surpresa, quando demos por eles, já tinham a artilharia toda montada.
Mantemo-nos calmos a observar e chegámos à conclusão que não tínhamos grandes hipóteses de lhes fazer frente. Eles eram mais que muitos, enquanto que nós não passávamos de 33. E ainda por cima estavam equipados com um potente canhão, que disparavam incessantemente na direcção do quartel.
De onde nos encontrávamos víamos o panorama de um fabuloso espectáculo, tais como as granadas a rebentar no ar, abrindo como cogumelos, fazendo lembrar fogo de artifício, os telhados de palha das tabancas a arder, a aldeia toda iluminada, com o céu amarelo alaranjado, devido aos Very-Lights que eles disparavam, enquanto os nossos lá do quartel se mantinham silenciosos sem responderem, pois se o fizessem podiam matar-nos a nós também. Para eles era bastante doloroso ter de suportar tais ataques sem poder reagir. O inimigo há alguns tempos atrás, quando não levava resposta punha-se logo em debanda, só que começaram a compreender que estavam fartos de ser enganados e já não iam na treta.
O alferes Samaritano deu ordens para nos mantermos calmos e esperarmos que o inimigo gastasse a maior parte do material e só depois de desmontarem o canhão é que nós lhes saltaríamos em cima.
O ataque foi bem planeado e não podia falhar. Só que os planos iriam ser rapidamente alterados.
O Fiúza impaciente e nervoso não resistiu e desatou a disparar na direcção deles. A resposta não se fez esperar. Imediatamente voltaram o canhão e toda a sua artilharia na nossa direcção.
Não tínhamos absolutamente chance nenhuma. Assim que as granadas começaram a rebentar perto de nós, entrámos em pânico e cada qual fugiu para o seu lado, pensando só e unicamente em salvar o físico, esquecendo-nos até do perigo de cair numa mina.
Quando dei por mim estava completamente sozinho. Devia ser talvez meia noite e meia-hora. Tentei acalmar-me e dissipar o pânico, embrenhei-me dentro da mata e ali fiquei bem escondido, até que tudo serenasse.
Decorridos talvez 20 ou 30 minutos ouvi vozes a aproximarem-se, fiquei quieto que nem um rato, prendendo a respiração. Dali distinguia-lhes bem as silhuetas e verifiquei que deviam ser perto de 80. Enquanto caminhavam iam conversando animadamente em "criôlo", dialecto que eu infelizmente não compreendia, mas deu para entender que iam contentes e felizes com o ‘’rônco’’que fizeram. O canhão rodava no meio da coluna.
Entretanto deixei de os ouvir. Esperei mais 10 ou 15 minutos e arrisquei a sair muito cautelosamente do esconderijo. Andei alguns metros e reparei nas marcas das rodas do canhão cravadas no solo. Depois de municiosamente me certificar de que o perigo já tinha passado, comecei a caminhar com muito cuidado, devido ao risco de poder pisar alguma mina.
Cheguei ao quartel por volta das 3 horas da manhã, onde já se encontravam uns dez ou doze camaradas. Agora restava-nos esperar pelos outros, que aos poucos foram regressando descompassadamente. Eram já 5 horas quando apareceram os últimos dois. Fez-se a contagem e não faltava ninguém. O alferes Oliva Samaritano não pronunciou palavra, enquanto o Fiúza andava de um lado para o outro como se estivesse noutro planeta.
Os dias passaram e tudo voltou à normalidade. Entretanto soou-nos aos ouvidos que vinha um médico psiquiatra para examinar o Fiúza. E não foi preciso esperar muito.
Numa bela tarde poisou um helicóptero no meio da parada e de lá saiu o tal médico psiquiatra, que se dirigiu ao capitão Capucho, que de imediato mandou um jipe buscar o Fiúza ao abrigo.
Curiosos esperávamos o desenrolar dos acontecimentos, enquanto o médico e o capitão se dirigiam para a enfermaria.
De repente aparece o Fiúza acompanhado do condutor que o foi buscar, dirigiram-se à enfermaria onde o médico o esperava, acompanhado do capitão.
Corremos em massa para espreitar através de uma das paredes, que era construída com tijolos de cimento abertos para arejar.
O Fiúza apresentou-se de calções, botas de lona e camisa de meia-manga, vinha contente e feliz como se fosse para uma festa.
O médico fez-lhe algumas perguntas que nós não entendemos, enquanto ele se maneirava de um lado para o outro como se estivesse a dançar.
Nisto o médico tira um martelinho de borracha da mala e começa-lhe a dar pancadinhas nas articulações dos joelhos e dos cotovelos. O Fiúza contorcia-se e enrolava-se com tanto riso, chegando a um ponto que até guinchava.
O pessoal cá fora não se conseguia conter e a maioria acabou por rir até quase rebentar.
Pessoalmente chocou-me deveras ver o meu maior amigo à beira da loucura e ainda ser alvo de risos e gozos por parte da maioria dos seus camaradas. Mas enfim, hoje reconheço que éramos mesmo assim, porque o sofrimento já nos tinha tirado o sentimento. Estávamos como que embrutecidos.
Eu conhecia-o profundamente e por esse motivo achava tudo muito estranho e quase me convencia que ele não estava louco. Estava sim, a encenar uma grande peça teatral, mas por outro lado ficava confuso, pensando nas atrocidades que ele tinha cometido, perdendo o amor à vida e pondo a nossa também em risco. Todos estes pensamentos me deixavam também a bater mal, o que era normalissimo, porque com o tempo que já tínhamos passado na Guiné, estávamos a ficar completamente cacimbados e apanhados pelo clima.