SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
SATURAÇÃO E CANSAÇO
omecei a passar a maior parte dos dias num dos barracões que servia como refeitório. Ali desenhava e picava os braços de todos aqueles que a isso se submetiam, até que cheguei a um ponto que não podia mais porque à noite tinha de sair para as emboscadas e devido ao cansaço quase adormecia no mato. E se algum dia isso acontecesse era perigoso e arriscado.
Contei este problema que me andava a afligir àqueles que queriam ser tatuados e também aos outros que já o tinham sido. Imediatamente se uniram e prontificaram a ir para as emboscadas por mim.
Foram ter com o alferes Souto e pediram-lhe se ele concordava em fazer a troca e ele acedeu.
Fiquei mais aliviado e passei a trabalhar mais, até altas horas da noite, à luz fosca e tremola do gerador, mas o pessoal merecia porque me sabiam recompensar, chegando a um ponto que quase me estragavam com mimos
Durante o dia traziam-me whisky, cerveja, café etc... iam à caça e apanhavam aves quase sempre pelicanos, que temperavam com limão, jindungo e manteiga, depois assavam e traziam-me sempre os melhores pedaços. Sabia a pneu, mas naquela altura era um petisco.
Os dias iam passando e eu raramente escrevia à família, embora a minha mulher me escreve-se quase todos os dias. Mandei-lhe dizer o que se estava a passar e que não se preocupasse porque eu estava bem.
Entretanto o alferes Souto França embirrou que eu tinha de voltar às emboscadas. Veio ter comigo e mandou-me equipar dizendo que a boa vida para mim tinha acabado.
Grande sacana, pensei eu, avisa-me assim de um segundo para o outro sem ao menos me dar tempo a descansar.
Saímos por volta das 20 horas em direcção ao cruzamento de Bissécema que era o sítio onde o inimigo passava frequentemente para ir atacar o quartel.
Caminhámos durante duas horas ao longo do que já tinha sido uma estrada, mas ao lado sempre ocultos por dentro do mato. Os carros por ali não circulavam e como a guerra na Guiné já durava há praticamente dez anos, aquilo a que chamavam estrada deixou de o ser, para se ir transformando numa selva, com árvores e mato a crescer por todo o osfalto, não deixando por isso de se reconhecer os vestígios de uma estrada.
Chegámos, ocultámo-nos e deitámo-nos bem escondidos no meio da mata, num ponto onde tínhamos visibilidade para o cruzamento. Fiquei no meio do Lôrpa e do Ventoso, talvez a 1,5 metro de distância de cada um.
O silêncio era total e convidava a dormir. Passados momentos, tirei o cinturão com as cartucheiras e meti-o debaixo da cabeça como se fosse uma almofada. O sono foi mais forte que o medo e acabou por me vencer.
Passadas horas sem os turras aparecerem, o alferes fez sinal para se levantar a emboscada, como era noite cerrada e a floresta densa, foram-se todos embora e deixaram-me ali a dormir.
Quando acordei, deviam ser 3 e tal da manhã. Entrei em pânico, ao mesmo tempo que às apalpadelas tentava encontrar o Lôrpa ou o Ventoso. Mas deles nem sinais. O medo apoderou-se completamente de mim e por momentos fiquei paralisado sem saber o que fazer. Aos poucos fui recuperando a consciência e decidi pôr-me a caminhar pelo mesmo caminho que tinha vindo, sempre oculto e escondido por dentro da mata, valendo-me para isso o meu bom sentido de orientação.
Conforme caminhava, ia pensando no terror que era ser apanhado à mão pelo inimigo e isso ainda mais nervoso me deixava.
O dia começava a nascer, enquanto eu muito cuidadosamente ia caminhando em direcção ao quartel, quando de repente comecei a ouvir barulho de alguém que se aproximava roçando pelo mato. Imediatamente me escondi até ver o que era e foi com uma enorme alegria que reconheci o meu pessoal. Deram pela minha falta e vieram preocupados, ver se me encontravam.
Aproximei-me e falei baixo :
- É pessoal estou aqui!
A alegria de alguns foi muita por me terem encontrado, principalmente do Fiúza que era o maior amigo.
- Então seu Serra - perguntou o alferes Souto, adormeceu no mato?
- Adormeci sim meu alferes, porque estava cansado e fui vencido pelo sono.
- Bom sendo assim fico mais descansado, respondeu ele. Deu ordem para prosseguirmos sem fazer mais comentários e não voltou a falar mais no assunto.
Estava cheio de sorte e sentia-me protegido. Não sei se devido ao cinto e à pulseira que a Huana e a Danka me tinham oferecido. A partir desse dia jurei que enquanto estivesse na Guiné não mais os tiraria, excepto quando tomasse banho, para os outros não verem.
Infelizmente fui-lhos restituir no último dia que estive em Jabadá e hoje tenho pena, porque afinal era a única recordação com que eu ficava delas. Mas paciência, quando somos novos não pensamos e a única coisa que me resta delas são as recordações de todo o bem que me fizeram.
Continuei a fazer tatuagens e a sair para as emboscadas, mas a partir desse dia estava sempre de olho bem aberto, porque tinha medo de voltar adormecer, e ser apanhado à mão
Passou também a haver mais cuidado e atenção por parte de quem nos comandava. Quando saíamos para o mato fazíamos sempre a contagem, começando pelo primeiro. Quando nos preparávamos para regressar voltávamos a contar e só depois de termos a certeza de que não faltava ninguém é que partíamos.
Estávamos quase no Natal e entretanto mandaram-nos arranjar madeira para construir um palco, porque íamos ter espectáculo com artistas que vinham da Metrópole.
Ficámos radiantes e cheios de contentamento. Em menos de nada construímos um palco às ‘’3 pancadas’’ e ansiosamente esperámos durante mais 2 dias, os tais cantores ou artistas que vinham para nos alegrar.
Pelas 10 horas da manhã poisa um helicóptero na pista de terra batida. Curiosos aproximámo-nos para ver os tais artistas, que já alguns dias esperávamos e foi com grande alegria que vimos, o Duo Ouro Negro em carne e osso, ali bem junto de nós.
Desceram o Raúl, o Milo, o Piloto e o Co-Piloto. Vinham todos vestidos de camuflado. Depois perante os gritos e a alegria do pessoal, subiram ao palco e começaram a cantar a "Maria Rita" fazendo-se acompanhar cada qual com a sua viola, sem microfone nem aparelhagem de som.
Quando já exaustos terminaram a actuação, desceram do ‘’palco’’ e distribuíram abraços e cumprimentos, por todos nós sem excepção.
No fim pedi a um camarada que andava com uma máquina fotográfica, se tirava uma fotografia a mim e ao Milo e depois outra com o Raúl. Disse que sim mas duvidava que o rolo desse para mais duas fotografias. Abracei-me com o Milo e juntaram-se mais quatro camaradas. O rolo felizmente ainda deu, só que quando íamos a tirar também com o Raúl infelizmente acabou. Foi pena porque também gostava de ter ficado com uma recordação dele, mas paciência fiquei só com a o saudoso Milo que ainda hoje guardo em perfeito estado de conservação.
Admirei a coragem e a valentia desses dois Grandes Cantores, que arriscavam a vida para darem alguns momentos de alegria àqueles que estavam esquecidos da civilização. Bem hajam! Que Deus dê muita saúde ao Raúl, e ao Milo o Paraíso.