SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
A PRIMEIRA BAIXA
s emboscadas no mato cada vez mais se sucediam. O perigo espreitava-nos a cada passo e eu cada vez mais ia notando que os milícias não perdiam uma oportunidade de nos arrastar para as picadas. Mas dia 15 de Abril de 1969 foi fatal, quando fazíamos precisamente um mês e meio de comissão.
Caminhávamos pela picada em campo descoberto e como sempre guardávamos uma distância de 5 metros em relação ao da frente.
Na dianteira iam sete milícias e eu seguia-lhes logo na peugada. Era o primeiro dos brancos sempre atento e desconfiado; atrás de mim vinha o Augusto.
Conforme prosseguíamos pela picada, notei um ponto da terra removida que os sete milícias da frente evitaram pisar.
Devido à minha ignorância e à pouca experiência que tinha, fiz o mesmo que eles, deixando a armadilha para o seguinte, que neste caso foi o Augusto.
Ouviu-se um estrondo repentino, tão grande que até parecia que o mundo ia desabar sobre as nossas cabeças!... O corpo do Augusto foi projectado pelo ar, a uma altura bastante considerável... eu levantei os pés do chão e caí enrolando-me na poeira, sufocado e sem conseguir respirar. Dava até a sensação que o coração estava parado e os tímpanos se tinham rebentado. Os outros gritavam a perguntar quem tinha caído na mina e eu respondi que foi um dos pretos milícias, induzindo em erro, porque tal como eu o Augusto estava todo mascarrado, devido à grande nuvem de terra preta que o rebentamento provocou.
Vi a perna direita do nosso infeliz camarada, a partir do joelho para baixo, com o osso bicudo e muito branco e as peles a penderem sobre ele. Debrucei-me e reconheci o Augusto, que ali ficou prostrado no chão sem dar um ai. Parecia até calmo e resignado com o infortúnio que o mutilou para o resto da vida.
Depois, suavemente, moveu os lábios e pediu um cigarro que foi fumando, enquanto o enfermeiro Fidalgo lhe colocava um garrote e metia compressas para estancar o sangue.
Rapidamente se comunicou para Bissau a pedir socorros e logo passados 15 minutos aproximadamente, poisou um helicóptero junto de nós, saltando dele duas enfermeiras pára-quedistas com uma maca de lona e uma mala de 1º socorros. Depois, com muito cuidado, levantaram-no do chão e colocaram-no na maca e ali mesmo lhe espetaram a seringa do frasco do soro, que uma delas levou segurando ao alto.
O helicóptero levantou voo e nós tristemente acenámos um último adeus àquele camarada e amigo, para quem a guerra tinha acabado tão drasticamente da pior forma. Mas a vida tinha de continuar, só que a partir daquele momento com mais traumas e medos, que infelizmente iam aumentando a cada dia que passava. A maldição que pairou nesse dia sobre nós, mais propriamente sobre o Augusto, iria pôr um ponto final nas caminhadas pela picada, o cuidado e a atenção redobraram... de onde um tirava os pés, o outro metia-os logo no mesmo sítio.
Mas o inimigo como hábil e experiente que era, não se deu por vencido e imediatamente começou a armadilhar dentro da mata, com outros requintes de malvadez
Por imposição da lei da guerra, nós tínhamos a aviação, e eles as minas como compensação. Só que eles com as minas faziam muito mais estragos que nós com a aviação.
As armadilhas e minas anti-pessoais eram maquiavelicamente preparadas, não para matar mas para estropiar. O seu principal objectivo era psicológico, procurando levar a desmoralização às linhas da retaguarda, às famílias e conterrâneos que viam os seus filhos e amigos regressarem mutilados.
Embora esse objectivo também se dirigisse à tropa combatente, o efeito que produzia no exército português era exactamente o aperto - mais vontade tinham de retaliar.
Numa bela manhã caminhávamos muito atentamente pelo meio do mato, quando de repente começámos a notar que os macacos se agitavam saltando de ramo em ramo, fugindo que nem uns loucos. Aquilo não era normal, parámos e baixámo-nos silenciosamente à espera dos acontecimentos. Quase como que por instinto, tirei a faca de mato e distraidamente comecei a picar a erva... e quanto mais picava mais o som se alterava, poc ... poc ... poc !...
Aquele som não era normal, comecei a desconfiar, resolvi com a ponta da faca levantar a erva e qual não foi o meu espanto quando deparei com uma mina anti-pessoal no meio dos meus pés.
A estrela da sorte não me abandonava e eu acreditava cada vez mais que estava protegido pelo sobrenatural e pensá-lo dava-me mais forças para lutar. Prosseguia o meu caminho sempre confiante e cheio de fé em Deus, mas o mais interessante era quando caíamos em alguma emboscada. Eu nunca pronunciava o seu nome, mas no fim reconhecia que Deus esteve lá para me proteger, porque eu quase sempre saía ileso.
A mina foi desmontada pelo nosso furriel Pacífico, sapador especializado em minas e armadilhas. As minas desmontadas davam sempre uma verba em dinheiro para quem as descobria, mas pela parte que me tocava nunca vi um tostão.
O Augusto escreveu e na carta que andou de mão em mão dizia o seguinte:
- Já fui a Alemanha meter uma prótese.
Fiquei sem a minha perninha mas vi-me livre do inferno da Guiné, que segundo penso é mil vezes pior que o Vietname. Embora ele nunca estivesse no Vietname mas segundo me apercebi ele até tinha razão.
Não era por acaso que os Americanos nos tentavam contratar quando estávamos no fim da comissão e até com vantajosos contratos, senão vejamos. 200.000$00 no acto do contrato e 30.000$00 de ordenado mensal, o que naquela época era uma autêntica fortuna e a sua preferência era só e unicamente pelos portugueses combatentes da Guiné.
Muitos nem chegavam a vir à metrópole, assim que acabavam a comissão embarcavam logo rumo ao Vietname. Não sei se o faziam por dinheiro ou por gosto, visto já estarem tão habituados à guerra que já não podiam passar sem ela. Acho que era pelas duas coisas; juntavam o útil ao agradável.
A carta do Augusto deixou-nos tristes e desmotivados. Passados alguns meses ouve quem chegasse a desejar ficar sem uma perna, só para se ver livre daquele inferno. Eu pensava sempre que havia de sair dali são e escorreito e não me deixava deprimir por essas malditas atrocidades.