SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O  DESEMBARQUE

 

 

 

cordei  sobressaltado  por volta das 6 horas da manhã... esfreguei os olhos e apurei os ouvidos. Tentei ouvir o barulho dos motores mas nada. O navio estava completamente parado.

         Aprontei-me e rapidamente subi ao convés e o que me foi dado ver é quase impossível de descrever.

         Primeiro assustei-me com os gritos dos negros estivadores naturais da Guiné, que já tinham subido ao Navio e o começavam a descarregar gritando e gesticulando de um lado para o outro, metendo os nossos caixotes do armamento e todo o nosso material nos guinchos, com perícia e eficácia. Por baixo estavam já os batelões que iam recebendo e arrumando tudo.

         A maré estava baixa e devido a isso o navio não pôde atracar ao cais sendo obrigado a amarar ao largo.

         Novamente esfreguei os olhos e quando os abri por momentos até pensei que estava num paraíso de fadas, dos contos das mil e uma noites.

         O navio estava quase que encostado a uma pequena ilha tropical, que inspiraria até o mais famoso dos pintores. O rio Cacheu, as palmeiras, os coqueiros, o próprio clima. Tudo aquilo me mostrava um paraíso que eu jamais imaginei que existisse, e que mais tarde tristemente verifiquei que os homens teimavam em destruir e tornar num inferno.

         Bruscamente, fui despertado por gritos e vejo o Sardinha pendurado por cima de mim nos varões da escotilha, a preparar um voo espectacular para dentro de água: fabuloso ... fabuloso ... até merecia palmas. Em toda a minha vida nunca vi um mergulho assim tão perfeito, com a agravante da enorme altitude.  Não há dúvida que merecia grandes aplausos, só que o comandante deitava fumo pelas narinas enquanto nós víamos o Sardinha a emergir das profundezas da água.

         Assim que emergiu foi logo um batelão no encalço dele; só que o Sardinha não estava nada interessado em ser pescado e nadando velozmente só pensava em fugir.  Até que se cansou e finalmente foi içado.  O Sardinha teve muita sorte porque os tubarões deviam ter ido passar o fim de semana para outras bandas, ou então não gostavam de Sardinha. 

         Não sei se lhe deram sanção ou sermão; mas o certo é que durante os 10 dias que permaneci em Bissau nunca mais o vi e ninguém soube explicar o que lhe aconteceu; certamente privaram-no de conhecer a cidade.

         Era sábado 1 de Março de 1969. Deixámos o Uíge e no cais já se encontravam as Berliet para nos transportarem até Brá "Quartel de Adidos" onde iríamos permanecer até segunda-feira dia 10.

         Chegados ao destino e depois de arrumarmos todo o material nas casernas que nos estavam destinadas, mandaram-nos formar juntamente com o Batalhão de Cavalaria 7. Depois de todos muito bem alinhados apareceu o então brigadeiro António de Spínola, que começou por nos dar as boas vindas; onde frontalmente e sem rodeios nos disse:

         - Soldados, chegou a altura de defenderem a Pátria. A Pátria precisa de vocês; por este motivo devem-se sentir valentes e orgulhosos. Muitos de vocês não vão regressar, porque a luta pela nossa Pátria assim o exige.

         O sol escaldante ia-nos queimando e de vez em quando, lá ia um ao tapete do alcatrão meio derretido da parada; era levado e o brigadeiro continuava:

         - Garanto assistência aos feridos tanto de noite, como de dia. Todo aquele que ficar ferido será socorrido, mesmo debaixo de fogo.

         O brigadeiro cumpria sempre aquilo que prometia. Mais tarde tive a prova disso e fiquei até, com uma grande admiração por ele, porque ele era mesmo um grande Homem, com H grande, digno, justo e valente.