SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
O EMBARQUE
o dia seguinte, quarta-feira, pelas 7,30 lá estávamos nós formados à espera de mais exercícios, ao mesmo tempo que a minha cabeça martelava ... martelava ... Sempre pensando no meu querido filho, que me consumia o coração.
Sábado, dia 22, tivemos praticamente o dia todo por nossa conta, excepto duas ou três horas da parte da manhã.
Fui almoçar com o Fiúza e a esposa. Os três de semblante carregado e com a tristeza bem estampada no rosto. De vez em quando lá íamos dizendo algumas larachas e forçosamente sorríamos. A nossa angústia era tanta, que os nossos pensamentos acabavam por se baralhar, fugindo sempre para África, que para nós era ainda desconhecida.
De seguida, passei pelos talhos dos meus amigos, sr. Francisco, conhecido em Estremoz como ‘’Chico da Carne’’ e do sr. João, conhecido como ‘’João Pastor’’, para me despedir.
Disseram-me que já tinham combinado e que a despedida seria feita com um jantar na casa do sr. João, com ambas as famílias presentes. Fiquei tão contente sensibilizado que não soube como agradecer.
O jantar foi farto e cheio de alegria forçada, principalmente para mim, que tinha os pensamentos muito distantes.
Entre outras coisas disseram que simpatizavam e gostavam muito de mim, porque o meu comportamento era diferente dos demais.
Mais uma vez não soube como agradecer tantos elogios, limitei-me a sorrir e a retribuir tanta simpatia.
Saí da casa do sr. João por volta da l hora da manhã, com um saco contendo chouriços e queijos, que muito gentilmente me ofereceram.
Quando cheguei ao quartel já lá estavam os autocarros que foram alugados à empresa Cândido Belo e que nos iriam transportar até ao Cais da Rocha.
Saímos de Estremoz por volta das 4 horas da manhã; chegámos a Lisboa perto das 7 horas. O cais abarrotava com tanta gente. Os gritos e choros eram constantes e aflitivos.
Deixámos os Autocarros e dirigimo-nos à família que ansiosamente nos esperava. Durante duas horas e meia ficámos juntos a dar a despedida, com abraços, choros e beijos, como se fosse a última vez.
Aquele domingo dia 23 de Fevereiro de 1969 ficou assinalado para mim, como sendo, o dia mais triste e mais difícil, de toda a minha vida.
A minha querida mãe dizia que não queria ver ninguém chorar, mas depois de tanto esforço acabou por ser a primeira. O meu querido pai que pela primeira vez na vida eu também vi chorar, a minha querida avozinha, materna, a minha mulher, os meus tios, meus Irmãos, cunhados e primos. Ninguém se conteve e todos choravam a minha partida, o único que não conseguiu chorar fui eu.
O barco apitou, o choro e os gritos aumentavam à medida que nós nos íamos separando. Voltou apitar e em menos de 10 minutos estávamos todos lá dentro prontos p'rá partida com os lenços acenar. Deu o último apito e suavemente começou a navegar pelas águas serenas do nosso rio Tejo, ao mesmo tempo que os gritos se iam sumindo e as pessoas iam deixando de se ver.
Durante momentos, dentro do enorme navio Uíge, o silêncio era absoluto, só se ouvindo o barulho das máquinas e o piar das gaivotas. Só depois de passarmos a barra e entrarmos no alto mar, tudo começou a voltar ao normal.
Dava até a sensação de que navegávamos numa cidade flutuante, dada a imensidão do Uíge.
De repente, o navio, devido à ondulação, começou a balouçar de um lado para o outro, obrigando-nos a dançar; escusado será dizer que começaram os enjoos.
Os antigos diziam que a aguardente e as laranjas evitavam o enjoo; e como tal todo o mundo comia laranjas e bebia aguardente, mas pelos vistos não resultava porque passadas algumas horas só se ouviam gritos ao gregório, passando a haver vomitado por tudo quanto era sítio, principalmente nos corredores; isto durante dois ou três dias.
A minha mãe também me levou um saco com laranjas e uma garrafa de aguardente. Eu nem sequer lhes toquei e não vomitei nem tive enjoos, chegando assim à conclusão que tudo não passava de uma grande treta, pois se o bagaço ataca o fígado juntamente com as laranjas, pior ainda.
Dormíamos como ratos nos porões que outrora deviam ter servido para transportar cereais. Ali improvisaram as camas, tipo beliche, com madeira igual ou parecida com a dos andaimes das obras. Aproveitaram bem o espaço e no sitio de uma cama fizeram duas, uma por baixo e outra por cima, com colchões de palha de milho. Só que ali não havia percevejos, talvez por estar desinfectado com creolina e o cheiro ser intensivo...
Já farto de ouvir gritar ao gregório, fugi para o convés e ali fiquei durante algumas horas. Revi e conversei com alguns ex. camaradas da Cavalaria 7 cujo batalhão também embarcou connosco. Procurei o Pato, mas não o encontrei. Possivelmente também andava a gritar ao gregório.
Voltei para baixo com a intenção de me estender uns momentos em cima da cama, até à hora do jantar, mas quando pus o pé no primeiro degrau para descer ao porão, escorreguei no vomitado e de repente; catrapumba, vai de rebolar pela escada a baixo todo feito num 8, perante os risos estrondosos dos que ali se encontravam. Levantei-me a arfar e furioso, mas não tive outro remédio senão mudar de roupa e ir limpar a farda.
No outro dia da parte da tarde, juntamente com o Fiúza encontrei o Pato. Foi uma grande alegria e acabámos por comemorar os três com umas cervejas no bar do convés, que vendia bolos, chocolates, pastéis, leite e cerveja e por ali ficámos até à hora do jantar.
À medida que os dias iam passando mais nos íamos aproximando da costa africana. Os dias começaram a ficar mais quentes e cheios de sol. Dava até a sensação de que estávamos a fazer um cruzeiro, embora só víssemos céu, mar e os peixes voadores a irem de encontro ao barco. À noite tínhamos cinema na esplanada do convés, por momentos até me esqueci que ia para a guerra, mas a cabeça não parava de martelar e os pensamentos voavam a cada segundo em direcção àqueles que tão tristemente deixei para trás e assim iria ser incessantemente, durante aproximadamente dois anos.