SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

AS  TATUAGENS

 

        

 

stávamos em meados de Novembro. O Inverno já ia longe e as secas muito em breve se iriam fazer sentir ... e assim seria até meados de Maio do próximo ano, mês em que as chuvas novamente voltariam. O Sol era escaldante e mais intenso, queimando tudo e a nós também, excepto as árvores e as flores que se mantinham durante todo o Verão, com as suas cores naturais, talvez devido ao cacimbo e à humidade que caia durante a noite e que elas absorviam. Nós também bebíamos muitos líquidos para combatermos a sede e não entrarmos em desidratação. Mas tudo menos água, porque a água estava infectada com micróbios que nos podiam contaminar o organismo.

         Já ouvi diversas vezes algumas pessoas a comentar que os combatentes das ex-colónias gostavam muito da bebida e que alguns até exageravam.

         Aproveito agora para lhes responder:

         - Eu por mim falo! Bebi muitos copos em África, assim como também outros camaradas e amigos. Pessoalmente posso dizer que nunca fiquei obsecado pela bebida, porque sempre me soube controlar, o que ainda hoje faço com regra conta e medida, porque felizmente ainda tenho saúde para isso.

         Mas uma coisa eu posso afirmar, a bebida em África nunca faltava: desde o whisky genuíno Escocês, que custava para nós cada garrafa de 7,30 dcl. 30$00 a 40$00, garrafas de cerveja Sagres de 0,5 lt. custavam 1$50, latas de Coca-Cola Americanas e Espanholas que na altura eram proibidas em Portugal e que custavam o mesmo preço da cerveja. Tínhamos também latas de leite, chocolates e salsichas made in Holanda, tabaco português e estrangeiro etc... etc.

         Conclusão podia escassear a comida, mas a bebida e o tabaco nunca faltavam.

         Hoje, pensando bem, fico com a percepção de que a ideia deles era manter o pessoal alegre e sob o efeito do álcool, porque assim não pensávamos tanto na família e aumentava-nos a revolta e a raiva contra o inimigo.

         Uma coisa é certa, foram-nos habituando à bebida ainda no auge da nossa juventude ... mas de uma coisa tenho eu a certeza, nem todos aderiram, ou se habituaram à bebida. Aliás isto é como tudo na vida ... há pessoas que não foram à guerra e são uns alcóolicos incorrigíveis, enquanto que outros só bebem água e leite e sofrem do fígado, do estômago, dos rins etc... Alguns até têm uma enciclopédia de doenças, enquanto que outros são saudáveis e não sofrem de nada, porque não bebem.  Oliveira Salazar: dizia que : ‘’Dar vinho ao povo, era o mesmo que sustentar um milhão de Portugueses’’.

         Comecei a ser solicitado para fazer tatuagens, ao que aderi de muito boa vontade porque o pessoal ali era exemplar e sobretudo amigo. Atribuí esses sentimentos a tudo o que já tinham sofrido e penado, porque já estavam fartos de comer o pão que o diabo amassou e aprenderam portanto a dar o valor à vida e a quem a merece. Estes sentimentos ainda hoje contam muito para mim. Ensinaram-me a melhor maneira de estar na vida e a enfrentar certas pessoas escrupulosas e ambiciosas, que não interessam a ninguém, que espezinham e ultrapassam tudo e todos, pensando só na ganância, não olhando a meios para atingir os fins, nem que para isso tenham de derrubar tudo e todos ... a essas pessoas sim ... fazia-lhes falta a guerra do Ultramar para que lá aprendessem a ser honestos e humanos. Tenho a certeza que seriam completamente diferentes e passariam a proceder de outra forma tornando-se seres menos egoístas e ajudando os outros a viver. Segundo o meu modo de pensar, todas as pessoas que sofreram e lutaram na vida são boas e compreensivas, que não hesitam em ajudar o próximo, nem que para isso tenham de sofrer privações. São pessoas de grande carácter e de fortes sentimentos, humildes e humanas, que sabem enfrentar as barreiras e ultrapassar  os obstáculos, com calma, paciência e sabedoria.