SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O VÍRUS DA CÓLERA

 

        

 

e um dia para o outro, fomos alertados pela rádio, que dizia existir já casos gravíssimos de cólera, em toda a Guiné.

         Aconselhavam‑nos a ter o máximo de higiene e a tratar ou abater, todos os animais que se encontrassem feridos.

         O capitão Duro Capucho não perdeu tempo, andou pelos abrigos a inspeccionar se estava tudo com o máximo de higiene e sobretudo se tínhamos animais feridos, ou doentes.

         Tínhamos no abrigo um cão simpático e fiel, o Dragão, que nos seguia por toda a parte. O pior era quando vínhamos para o Comando, ele aparecia para nos procurar e os outros que lá se encontravam engalfinhavam‑se com ele em luta desigual, esfarrapando o pobre do Dragão até quase o matarem, e nós só os conseguíamos separar a pontapé.

         Por este motivo passávamos a vida a tratar‑lhe das feridas, com mercúrio e pomada. Recordo que ele era simpático com toda a gente, excepto com o Banhas, que segundo sabíamos nunca lhe tinha feito mal.

         Um dia o Banhas apareceu lá no abrigo a pedir-nos pregos e trazia um martelo na mão. O Dragão, assim que o viu, correu para ele a rosnar. O Banhas não lhe ligou, mas o cão perto das pernas dele, continuava a rosnar.

         Até que o Banhas disse:

         ‑ Não tarda muito que estejas a levar uma martelada nos cornos! 

         Nós ríamo‑nos e ele furioso, voltou o martelo e enfiou o cabo na boca do cão, ao mesmo tempo que dizia, morde aí cabrão. O Dragão não se fez rogado e traçou‑lhe o cabo, até quase o partir.

         Quando o capitão apareceu para passar revista ao abrigo viu o Dragão cheio de feridas pintadas com mercúrio. Olhou‑o bem e disse para nós:

         ‑ Quero este cão abatido imediatamente.

         Mas meu capitão - respondeu o Cabeça de Cobra, nós estamos a tratá‑lo e ele vai ficar bom.

         - Não me importo disso para nada, - disse o capitão, - quero o cão abatido e acabou‑se.

         Visto não haver alternativa, eu, o Morcela e os dois miúdos, pegámos num cordel e fizemos uma coleira ao cão. Depois o Morcela pegou na G‑3,  eu numa pá e viemos todos para baixo.

         Depois de abrirmos uma cova, espetámos uma estaca de madeira no rebordo e atámos o cão, que pressentindo a sorte que o esperava, gania e gemia, como que a implorar-nos misericórdia.

         Mas infelizmente não nos podíamos compadecer e foi com muita mágoa que forçosamente o abatemos, porque ele era mesmo um amigo fiel.

         O Morcela pegou na G‑3,  desfechou‑lhe um tiro na cabeça e eu com o pé empurrei‑o para dentro da cova.

         Os miúdos ficaram a tapar e nós viemos para cima tristes e com pena do animal, mas infelizmente nada podíamos fazer para o salvar, porque na tropa, as ordens têm de ser cumpridas.

         Conforme vínhamos para cima, de repente despertou‑me a atenção para o rabo de um grande lagarto que estava enfiado num buraco no chão. Como o rabo se movimentava vigorosamente de um lado para o outro chamei o Morcela à atenção e pedi‑lhe a arma.

         Encostei o cano ao buraco e dei um tiro. Depois de me certificar que o lagarto estava morto puxei‑o pelo rabo. Para nossa grande surpresa, conforme o puxei veio uma enorme cobra atrás, que ele ainda com vida continuava a morder sem largar.

         O Morcela rapidamente lhes apontou a G‑3 e começou a disparar até quase os desfazer.

         A cobra e o lagarto são dois eternos inimigos e quando se encontram lutam até à morte. Por isso se diz, que onde há lagarto não há cobra.

         Chegaram as vacinas e primeiro foi metade da companhia que teve de submeter os braços à picadela.

         Durante dois dias estivemos praticamente sem nos podermos levantar, dada a reacção da vacina que nos provocou febre de cavalo.

         Passada uma semana, levámos a 2.ª dose, mas felizmente não teve a mesma reacção da primeira.

 

         A vacina teve de ser dada em duas ocasiões diferentes a metade da companhia de cada vez, para que a outra metade se pudesse manter em condições operacionais.