SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O PRÍNCIPE DAS TABANCAS

 

        

 

ulacunda geograficamente situava‑se a leste da Guiné e era idêntica a Jabadá, com população humilde e bastante sociável.

         Por ali iríamos ficar durante vinte dias. À noite juntávamo‑nos com alguns camaradas e amigos, que já não víamos há praticamente dois anos. Bebíamos para confraternizar, debaixo de uma grande manifestação de alegria, talvez devido à "velhice" e a estarmos quase no fim da Comissão.

         Ninguém nos sabia explicar qual o motivo que nos levou até ali. E nós ingenuamente até pensámos que nos tinham beneficiado com uns dias de férias. Mas no entanto mantínhamo‑nos de pé atrás, porque quando a fartura é muita o pobre desconfia.

         No outro dia ao entardecer e depois de uma sesta, vi‑me sozinho e entrei dentro da cantina para comprar uma cerveja. Quando saí com a garrafa na mão, olhei em frente e vi um círculo de camaradas do 4.º pelotão. Por curiosidade abeirei-me para ver o que se passava e o que vi até me pareceu um fenómeno.

         Um lindo menino branco, louro e de olhos azuis, com cinco ou seis anos de idade, que falava maravilhosamente, respondendo a todas as perguntas que lhe faziam.

         Notava-se apenas uma ligeira diferença em relação a nós, por ter os lábios mais grossos e carnudos, provocados pela mama materna que o alimentou até aos três ou quatro anos de idade, por não haver outros recursos de sustentação, uma vez que não haviam nem leites em pó, nem biberões ou farinhas para a alimentação ou crescimento dos bebés.

         Fiquei sem saber a quem atribuir tão grande milagre, uma vez que ali não havia mulheres brancas, e muito menos louras de olhos azuis.

         O menino ia falando, e nós encantados escutávamos tudo quanto ele dizia, até que disse:

         ‑ Minha mamã é preta, mas eu gosto muito dela, porque ela faz tudo o que eu lhe peço. Diz que meu  "pai" era tropa aqui neste quartel, mas que foi para Trás os Montes e que um dia vem para nos levar p'rá terra dele. Só que eu estou sempre a pedir à minha mamã para ele voltar e ele nunca mais volta.

         Ao ouvir estas palavras, comovi-me e afastei‑me ligeiramente para o lado, por não conseguir conter uma lágrima teimosa. E pensei como é possível haver neste mundo homens tão cruéis e ingratos, que abandonam os filhos à sua sorte, sem assumirem responsabilidade alguma. Será que esses homens não sentem o remorso a atormentá‑los pela vida fora?

         Entretanto começou a escurecer e toda a tabanca procurava o menino desesperadamente, até que os avós e a mãe o encontraram junto de nós e o levaram tal e qual um príncipe.

         Vim a saber mais tarde que quando a mãe já se encontrava praticamente no fim da gestação o Transmontano "pai" do menino acabou a comissão e partiu para a Metrópole. Falaciosamente prometeu que voltaria um dia, para a levar a ela e ao filho, mas nunca o fez nem nunca escreveu.

         A mãe do menino era uma negra de traços finos e suaves, muito bela e muito triste, que fazia uma vida isolada e de pouca convivência com os da sua raça.