SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
A "COISA" RACHADA
ecordo‑me agora de que quando estive em Bissau na consulta externa passava a vida vagueando pela cidade.
Lembro‑me por exemplo de ver o cantor Marco Paulo que era 1.º cabo no quartel da Amura, onde eu ia muitas vezes almoçar e jantar convidado por outros camaradas que lá pertenciam. E dessas vezes quase sempre via o Marco, mas nunca o ouvi cantar em Bissau, embora ele cantasse por lá em bares e outros locais.
Num desses dias de manhã, andava eu com quatro ou cinco camaradas a passear pelo mercado, quando de repente surge um miúdo preto talvez com dezassete anos de idade a correr desenfreadamente.
Dava voltas e mais voltas ao mercado e ninguém o conseguia apanhar. Até que já cansado e exausto parou e começou a gritar:
‑ Mim matar o minina branco ... mim matar o minina branco ... minina branco ter manga di sangui ... minina branco morri . . . manga di sangui . . manga di sangui!...
Depois do miúdo acalmado, começámos a fazer-lhe perguntas e acabámos por saber que era criado num estabelecimento com restaurante, café e pensão e que o serviço dele consistia em limpar os quartos e fazer as camas dos hóspedes.
Fomos investigar se de facto o miúdo matou mesmo a menina branca e acabámos por descobrir que tinha acabado de saltar p'rá cueca da filha do patrão.
O miúdo acabou por ser um felizardo, porque a rapariga era bonita e nada de deitar fora.
Teve a sorte de lhe rebentar o cabaço e o azar de ser inexperiente e ter entrado em pânico ao ver o sangue a jorrar da "Greta dos Amores", deixando deste modo a rapariga envergonhada e apontada por toda a gente, que comentavam em qualquer esquina que foi um preto que vergonhosamente lhe tirou os três.
Se fosse um branco seria a mesma coisa, porque o cabaço acabaria por haver sempre alguém que lho rebentasse sem esperar que ela chegasse à velhice. Só que se fosse um branco a fazê‑lo talvez ela se tivesse livrado de tanta humilhação.
O pessoal era danado para as alcunhas e para a brincadeira, e disso tive eu a prova quando acabei a comissão e estive em Bissau treze dias à espera de embarcar para a Metrópole.
Passei esses treze dias em completa euforia, de comezanas e copofonia, juntamente com outros camaradas e amigos, dois dos quais eu jamais esquecerei. Eram eles o Osguinha e o Pintadinho, danados para a brincadeira. Lembro-me por exemplo de quando viam algumas madames brancas a passear nos passeios da avenida, começarem a simular que levavam cães pela trela e teatralmente faziam que os puxavam energicamente dizendo:
- Anda cá Bobi.
- Anda cá Tarzan.
- Não tarda muito que estejas a apanhar.
- Não fujas para a estrada que os pópós podem atropelar-te.
As senhoras como não viam cães nenhuns ficavam furiosas e chamavam-lhes malucos, enquanto nós nos encostávamos à parede e ríamos que nem uns perdidos.
O Osguinha tinha os olhos muito salientes, e por vezes até parecia que queriam saltar das orbitas. Tinha os olhos inchados como as osgas, motivo pelo qual o alcunharam com o mesmo nome, "Osguinha".
O Pintadinho era ruivo e tinha a cara toda salpicada de sardas, (até parecia a Rita Pavone). Vai dai a alcunha de "Pintadinho".
Um dia depois de nos atascarmos de marisco e cerveja na Cervejaria Solmar viemos fazer compras para a zona comercial. Eu comprei brinquedos para os miúdos e algumas prendas para a minha mulher e familiares.
Já estávamos todos bem aviados e completamente de "Cabaça Cheia", mas insistíamos sempre em beber mais.
Nisto o Osguinha propõe:
‑ Vamos jantar ao Restaurante da "Coisa Rachada".
Éramos quatro e nenhum pertencia à minha Companhia.
Conheci‑os na consulta externa ... eram todos alegres e danados para a brincadeira.
Depois de ouvir o nome que ele pronunciou, fiquei de boca aberta e perguntei:
- "Coisa Rachada" porquê?
Ele riu‑se, reflectiu, e disse‑me:
- Então não te lembras quando estivemos cá na consulta externa daquela rapariga que o miúdo preto rebentou com as "29 Pregas" ?
Perante tal recordação rimo-nos todos até não poder mais, encostados à parede para não cairmos, de tão alegres que nos encontrávamos.
O sol já ia longe. Começava a escurecer, e nós lá nos encaminhámos até ao dito Restaurante.
Entrámos para a sala e logo deparámos com a "Coisa Rachada" sentada a um canto num sofá, com um "marmanjo" atracado a ela. Rimo‑nos disfarçadamente, e sentámo‑nos à mesa sem fazermos comentários.
Serviram‑nos a refeição, que concordámos ser acompanhada com vinho tinto. Passados alguns momentos os ânimos começaram‑se a exaltar ainda mais e nós brincávamos e ríamo-nos à gargalhada e ao nosso jeito, sem interferir ou provocar, quem quer que fosse, porque na generalidade éramos todos rapazes educados, simples e modestos.
Contávamos anedotas e um sem número de histórias, que contagiavam a maioria das pessoas que se encontravam presentes, que riam fascinadas com as nossas brincadeiras ... chegando a um ponto que até a "Coisa Rachada" e o Octário do noivo, a nós se aliaram. Octário ponto e vírgula, porque o rapaz até foi esperto.
A rapariga era boa como o milho, ainda por cima com um pai cheio de dinheiro e ela como única descendente e herdeira. E para mais já não ia ter o trabalho de escavar a "Gruta dos Amores", porque o miúdo preto já o tinha feito ... deixando o caminho aberto para quem viesse a seguir.
O ambiente era bom e agradável, com música ambiente seleccionada transmitida por um potente gravador de bobines de marca Scharp, o que aliás era normal ver‑se e ouvir‑se em todos os cafés e restaurantes de Bissau.
Entretanto levantámo‑nos da sala e viemos para o Bar, onde bebemos café e whisky, sempre bem dispostos com brincadeiras e gargalhadas. Mas o pior estava para vir.
Nisto o Pintadinho vai para se levantar e diz:
- Porra que já sinto os cornos pesados e não consigo levantar o cú da cadeira (o Pintadinho era solteiro).
Ri‑me e tentei levantar‑me, mas cada vez que tentava, via tudo andar à roda.
Estávamos todos bêbados. Bêbados mas conscientes, porque éramos daqueles que bebíamos álcool ... e não juízo.
Visto estarmos todos neste estado de graças, decidimos já não sair dali. Alugámos quartos e depois de bebermos mais uns whiskys, lá fomos para a cama, amparados uns aos outros a cantar e a dançar a valsa.
No outro dia acordámos bem dispostos, excepto eu que sentia os pensamentos baralhados, entre a Guiné e a Metrópole. De um lado estava a minha mulher e os meus filhos, a quem eu amava e adorava a mais que tudo no mundo. Que me esperavam ansiosamente, e de quem eu também morria de saudades. Ali bem perto, a pouco mais de 30 km de distância, estava a minha Quintas, a Africana que eu mais amei e de quem tristemente me despedi, para me vir juntar aos maiores amores da minha vida.
Bom vou mudar o tema; porque esta narrativa fazia parte do fim e eu ainda agora vou no princípio. Portanto acho melhor voltar a Tite, e recomeçar do ponto onde fiquei.