SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

A RAIVA E O ÓDIO

 

        

 

s dias iam passando e o ambiente no abrigo ia-se tornando cada vez mais insuportável, chegando ao ponto de o ar que se respirava ser de cortar à faca.

         De tempos a tempos deslocava-me para cantar em festas e quando regressava ao abrigo só via trombas e cinismo, chegando a um ponto que mal me dirigiam a palavra. Quando me viam baixavam a cabeça e olhavam-me de soslaio, como se estivessem a afiar a faca para espetar a vítima.

         O Albernôa tinha dispensado os favores que eu lhe prestava, lendo-lhe e escrevendo-lhe as cartas para a família, passando a fazê-lo o Marôco, que também não era flor que se cheirasse.

         O Bartéló que era o único que eu tinha como amigo, passava os dias na tabanca com os amigos nativos e quando tínhamos de sair para o mato, mandávamos os miúdos chamá-lo.

         O ambiente estava a ficar cada vez mais preto e eu sentia-me cada vez pior, naquele antro de víboras e jacarés.

         Comecei a proceder como o Bartéló, ausentando-me sempre que podia para o meio das tabancas, excepto nas horas da refeição, ou quando me competia a mim ficar de guarda ao abrigo.

         A cada dia que passava, eles iam injectando cada vez mais o frasquinho de veneno no Albernôa, com o propósito de me gozar e provocar.

         Quando, por exemplo tocava na rádio alguma dessas canções que eu costumava cantar, o Albernôa maquiavélicamente, punha-se a cantar e a dançar, como se estivesse numa dança de bruxas, com gestos provocantes e obscenos. Quando me voltava para trás, via-o fazendo essas tais palhaçadas nas minhas costas, enquanto que os outros cabrões, baixavam os cornos e riam para dentro.

         A tensão aumentava cada vez mais, ao mesmo tempo que aos poucos me ia destruindo o sistema nervoso.

         Só havia uma solução, tinha de pedir ao alferes Samaritano para me mudar de abrigo, antes que me pegasse com algum deles e ainda acontecesse alguma desgraça.

         Falei com ele e disse-lhe que não me entendia com aquela "trupe", que me andavam a fazer a vida negra e que por este andar ainda podia acontecer alguma desgraça, porque eu andava a ficar com o sistema nervoso todo arrasado.

         O alferes Samaritano não ligou e respondeu-me que não, porque ali naquele abrigo é que eu estava bem.

         - ’’Entregue aos bichos’’.  Pensei eu.

         Perante tal resposta fiquei sem saber o que fazer, amarrado de pés e mãos.

         O melhor era aguentar e esperar o desenrolar dos acontecimentos, até que pudesse surgir alguma alternativa que viesse melhorar a situação.

         Como já ia sendo habitual, quase todas as noites mandavam um milícia para fazer o 1.º reforço, normalmente das 19 às 21 horas.

         O 2.º pelotão tinha partido para Fulacunda onde já se encontrava há praticamente um mês. Deste modo passámos a contar com menos trinta e três homens, tanto no reforço como nos ataques ao aquartelamento.

         No nosso abrigo ficámos reduzidos a seis, uma vez que o Mau-Olho também pertencia ao 2.º pelotão.

         Numa dessas noites por volta das 20 horas, encontrávamo-nos todos cá fora, incluindo um milícia a quem eu chamava Pau-Preto, que se mantinha de sentinela, excepto o Bartéló que se encontrava com os amigos na tabanca.

         Em cima da mesa do telheiro onde costumávamos fazer as refeições, estava o rádio do Roque a transmitir discos pedidos, no Programa das Forças Armadas.

         O Albernôa cantava e dançava, esforçando-se por me provocar, eu a todo o custo ia resistindo às provocações quase a estoirar. Os outros cabrões riam à gargalhada ao mesmo tempo que o incitavam.

         Já cansado de tanto ser gozado, levantei-me e disse-lhe:

         - Vê lá mas é se páras com essas palhaçadas, que eu já estou farto de ser gozado por um porco como tu. Vai mas é gozar com quem te fez a cabeça!

         Os outros sacanas deviam ter ficado todos felizes da vida, pois há muito que preparavam a tourada.

         A reacção do Albernôa não se fez esperar. Veio para mim como um toiro, dando até a impressão que deitava fumo pelas narinas e arrastava os pés no chão.

         Conforme investiu, desviei-me e apliquei-lhe um valente soco num dos olhos e outros mais se seguiram. Os outros sacanas rodeavam-nos prontos a intervir, uma vez que o amigo estava a enfardar, mas o cobarde não precisou da intervenção dos amigos.

Vendo que eu não lhe dava hipóteses, correu para um pau que se encontrava encostado à parede do abrigo, e como uma seta, veio para mim pronto a aviar-me.

         Sem defesa recuei e fui-me espetar contra o arame farpado. Nem tempo tive de dar um grito de dor. O cobarde aplica-me uma valente paulada no peito e novamente fui contra o arame farpado, dando-me outra na testa, que me pôs a dormir enchendo-me depois de pontapés.

         Foram-se deitar como se nada de anormal tivesse acontecido. Também para quê preocuparem-se quando afinal era mais uma vida menos uma vida e embrutecidos como estávamos devido a tanto sofrimento, já nada nos afligia e o que era anormal passou a ser banal.

         Quando recuperei a consciência estava estendido no chão, com o Pau-Preto debruçado sobre mim, ajudando-me a voltar à realidade.

         A minha cabeça latejava consoante as pancadas do coração, as costas e o peito. Até parecia que tinha levado uma marrada de boi. As dores eram tantas que me dificultavam a respiração.

         Levantei-me com a ajuda do Pau-Preto. Despi a camisa ajudado por ele, com muita dificuldade indiquei-lhe um garrafão de 10 litros de água que me pertencia e pedi-lhe para me despejar pela cabeça e ao longo do corpo.

         Depois de me recompor, agradeci-lhe e entrei dentro do abrigo onde tudo era silêncio absoluto, porque os "filhos da puta" faziam que dormiam, com um olho aberto e outro fechado, pois certamente deviam estar curiosos em saber, se eu morri ou sobrevivi a tanto pontapé.

         Com muitas dificuldades lá consegui subir para a minha cama, que ficava na parte de cima da do Roque. Deitei-me mas não consegui dormir. A cabeça cheia de altos e baixos, martelava, transmitindo-me raiva e instintos assassinos, formando-se um turbilhão de ideias terríveis. As dores tornavam-se cada vez mais insuportáveis, chegando ao ponto de me porem a variar e quase a cometer uma loucura, insistindo sempre no mesmo pensamento :

         - Vou descer agarrar na G-3 e vingar-me neles todos, traiçoeira e cobardemente, tal como eles me fizeram a mim.

         Com muito sacrifício lá fui acalmando, valendo-me para isso mudar os pensamentos para a minha mulher, os meus filhos e os meus familiares.

         Talvez em parte lhes tivesse valido a maneira calma e pacífica de como fui criado e educado, sem maus instintos e dando valor à vida, tanto à minha como à do meu semelhante.

         Só que o cérebro humano é muito frágil e varia com muita facilidade, tanto para o bem como para o mal. E naquela noite podia ter acontecido o pior.

         Segundo a versão do Pau-Preto o cobarde depois de me apanhar desmaiado ainda me começou a dar pontapés, sem que os outros interviessem, sendo ele que se opôs e lhe fez frente, caso contrário o filho da puta, tinha-me mandado para os porcos.

         No outro dia o cabrão apareceu com um olho a fritar peixe (olho negro), mas eu estava muito pior que ele, embora os estragos que ele me causou estivessem ocultos e não se vissem.

         O Bartéló, quando soube o que se passou, ficou furioso e cheio de raiva e ao entardecer pegou-se com o Javardo.

         O Javardo dizia:

         - Vê lá se queres que te faça a ti o mesmo que fiz ao teu amigo!

          O Bartéló respondeu-lhe: 

         - E tu vê lá se queres que eu te ponha os dois olhos iguais.

         A coisa aqueceu e eles pegaram-se. Era soco que até fervia, com o Bartéló a dar mais. Eu, calmamente, aproximei-me de um pau  e sem fazer alarido, fiquei quieto à espera da reacção dos possíveis intervenientes.

         Entretanto, o cobarde desata a fugir à procura de um pau, mas o Bartéló foi mais rápido e pegou naquele que se encontrava junto de mim.

         O outro vendo que já não tinha hipóteses, refugiou-se dentro do abrigo, enquanto o Bartéló se prostrou à entrada de pau em punho, desafiando-o cá para fora e gritando :

         - Anda cá para fora cobarde! Anda cá que é para eu te fazer o mesmo que ontem fizeste ao Serra.

         O cobarde não saiu e a coisa acalmou. Embora com bastante pena minha, porque também gostava de o ver a levar umas valentes traulitadas, tal como ele cobardemente me deu a mim.

         Alimentei durante bastante tempo a sede de vingança, só que tive a sorte de mudar de ambiente e felizmente nunca cheguei a concretizar.