SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

PARTIDA  PARA  NOVA  SINTRA

 

        

 

stávamos ainda no oitavo mês de comissão e Nova Sintra estava a ser fortemente atacada, precisando urgentemente de reforços ... antes que fossem todos apanhados à mão. Os feridos aumentavam e até o comandante da companhia "capitão Simplício" já tinha sido evacuado para a Metrópole por ter ficado sem uma perna e gravemente ferido em combate.

         Aquilo por lá estava preto e coube ao 1º e 4.º pelotões ir em seu socorro para reforçar aquele sector, que se encontrava completamente isolado no meio da selva, que estava considerado como o pior sector do Batalhão e uma das piores zonas de toda a Guiné. Partimos sob o comando do alferes Souto França uma vez que o alferes Oliva Samaritano se encontrava de férias na Metrópole.

         Fui-me despedir da Danka e da Huana que me deram uns amuletos para dar sorte: um cinto de borracha para meter na cintura por baixo da roupa, de modo a que ninguém visse, caso contrário não dava tanta sorte e pior ainda, se alguém visse eram capazes de me gozar até me fazerem cair no ridículo, deram-me também uma pulseira para usar na parte de cima do braço e trazer igualmente escondida, por causa do mau olhado.  Insistiram para que nunca as tirasse, porque me iam dar muita sorte. Se usasse sempre, ficava livre de todos os perigos, como por exemplo nunca ser ferido em combate, ser mordido por cobras ou por qualquer bicho venenoso que me podia mandar desta para melhor de um momento para o outro.

         Tristemente me despedi com a promessa que voltaria brevemente são e salvo.

         Entretanto comecei a ficar deveras preocupado com um "caroço" que me apareceu no peito do pé esquerdo e que não parava de aumentar e de ficar cada vez mais negro.

         Saí da tabanca e dirigi-me à enfermaria. Falei com o enfermeiro Fidalgo e pedi-lhe para me rebentar o "caroço". Depois de ver e examinar ele olhou para mim e disse:

         - Olha Serra se eu te rebentar isto agora, vou ter de te meter um penso e depois ligar-te o pé e tu não te esqueças que vais ter de palmilhar muitos quilómetros daqui até Nova Sintra, portanto se te fizer isso agora vais ter dificuldade no andar. Aconselho-te a rebentares isso quando lá chegares, uma vez que  não te dói, nem te chateia.

         Agradeci o conselho e fui direito ao abrigo para começar a arrumar tudo o que tinha de levar para Nova Sintra. Entretanto pedi ao Banhas para me tratar e cuidar bem do Nilo, ao que ele acedeu de bom grado visto gostar muito dele e o Nilo também correspondia.

         Deixámos Jabadá por volta das 3 horas da manhã com destino a Tite. Embarcámos nos Zebros dos Fuzileiros que nos transportaram até ao Enxudé, de onde seguimos pela estrada até Tite, onde chegámos pela manhã.

         Almoçámos, jantámos ... e descansámos até à meia-noite, hora a que nos metemos a caminho em direcção a Nova Sintra.

         Conforme prosseguíamos, atravessando bolanhas, pântanos e selvas completamente virgens, íamos ouvindo de longe a longe os macacos cães a ladrarem no silêncio da noite. Tudo isso contribuía para que nos sentíssemos inseguros e desconfiados, com um certo medo e receio de sermos atacados e dizimados. E até, quem sabe, apanhados à mão. Os "filhos da puta" até seriam bem capazes de cumprir a promessa que nos tinham prometido: cortar-nos os "colhões" pela raiz e deixá-los espetados em paus.

         Havia motivos para ter medo e até para pensar assim, olhando ao nosso reduzido número de 70 homens. Se eles viessem em massa como era seu costume com 150 ou 200 nós não tínhamos hipóteses nenhumas, embora o alferes Souto França que nos ia a comandar nos desse animo e confiança.

         Eu quase sempre andava nos primeiros, mas desta vez o alferes Souto mandou-me para último e essa posição ainda mais nervoso me deixava, porque era o lugar em que ninguém queria andar, por recearmos ser capturados, com um esticão ou com uma paulada na cabeça, sem que os da frente disso se apercebessem.  Como era arriscado tínhamos de nos precaver.  Os últimos três da coluna andavam sempre ligados entre si com uma corda, isto durante a noite quando prosseguíamos por florestas cerradas, as quais muitas vezes tínhamos de devastar com "catanas" para podermos passar.

         Entretanto, começámos a sentir ferroadas nas pernas e mais intensamente nos testículos: estávamos a atravessar uma zona infestada de formigas vermelhas. As dentadas que nos davam eram bastante dolorosas e nós ao senti-las esfregávamos as partes mais atacadas, que neste caso eram os testículos.

         Conforme caminhávamos elas agarravam-se às botas e subiam por nós acima, a maior parte delas por dentro das calças, outras subiam por fora para nos ferrarem no pescoço.

         Não aguentávamos mais tanta ferroada e forçosamente tivemos de parar para meter as calças para dentro das botas e das meias, e assim prosseguirmos, sendo mordidos só de vez enquando no pescoço.

         Por volta das 4 horas da manhã parámos para descansar numa zona mais descampada. Deitámo-nos no chão e emboscámo-nos de olho bem aberto e sempre alerta. De repente, no silêncio da noite, ouve-se um grito de dor vindo do meio da coluna,. Ficámos alertados sem saber o que se passou, até que passaram palavra informando que o Júlio tinha sido mordido por uma cobra e que segundo o testemunho do Bartéló, que se encontrava junto a ele, era uma cobra preta e muito pequena não medindo mais de 40 cm.

         Imediatamente o "Elvas", enfermeiro que nos acompanhava, lhe aplicou uma injecção na veia do braço mordido, que neste caso foi o esquerdo, dizendo que era o único antídoto que trazia para mordeduras de cobra.

         O Júlio, depois de levar a injecção começou a ficar inanimado e em fracções de segundos entrou em coma, com o braço a ficar negro como o carvão.

         Não havia tempo a perder, imediatamente se comunicou para Bissau a pedir socorros. Em menos de 20 minutos tínhamos um helicóptero a poisar junto a nós, de onde saíram duas enfermeiras pára-quedistas com uma maca, onde o deitaram e rapidamente aplicaram mais uma injecção no braço.

         Graças à assistência imposta pelo então brigadeíro António de Spínola, o Júlio salvou-se, depois de ter estado durante muitos dias entre a vida e a morte.

         Era já dia. Antes de prosseguirmos deitámos as calças abaixo: e ficámos pasmados perante tantas cabeças de formigas agarradas às pernas e aos testículos pois que quando as arrancávamos deixavam as cabeças mordendo a nossa pele. Depois de dolorosamente tirarmos a maior parte delas, lá continuámos até Nova Sintra, onde chegámos por volta das 10,30 horas e onde fomos recebidos com grande manifestação de alegria ...  pelos nossos camaradas e amigos, que praticamente há oito meses não víamos.

         Aquela zona metia respeito ... o aquartelamento era completamente subtêrraneo, havendo somente à superfície a cozinha e mais dois barracões que serviam como refeitório. Tudo o resto estava debaixo do chão, excepto como é lógico, a pista onde aterravam as avionetas e os helicópteros, que nos abasteciam com diversos os géneros.

         Nova Sintra estava no meio da selva, num isolamento total, não havendo num raio de 20 ou 30 klm., nem tabancas nem população. Estava completamente exposta aos ataques do inimigo.

         Honra seja feita aos nossos camaradas Cavaleiros de Nova Sintra, por terem conseguido dessa forma a adaptação àquele modo de vida precário e sem condições, lutando pela sobrevivência com humildade, coragem e valentia.

         O aquartelamento estava implantado num círculo vedado com arame farpado, fazendo lembrar uma praça de toiros e a sua dimensão seria talvez o dobro da praça do Campo Pequeno. Tinha gerador eléctrico para alimentar os holofotes que iluminavam durante a noite para fora do arame farpado.

         Em todo o aquartelamento só havia um Nativo que tinha sido capturado ao inimigo e que por ali tinha ficado para ajudar em diversos afazeres, e porque era bem tratado e sentia-se  bem junto de nós, porque aliás os ex-turras prisioneiros acabavam por ser quase da família.

         Ali não havia lavadeiras, quem tinha de lavar a roupa éramos nós. Água  não faltava, porque o quartel tinha um grande poço com um bom motor. De resto estava tudo bem organizado, os géneros alimentícios e as bebidas também não faltavam, porque de vez enquando vinham helicópteros e avionetas  descarregar.