SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

OS  ABRIGOS

 

        

 

s abrigos estavam construídos com grossas paredes, talvez com 1 metro ou mais, tendo na parte avançada as vigias por onde disparávamos e onde se encontrava todo o material que fazia parte da nossa defesa: cunhetes de munições, granadas de roquete, de basuca, de mão etc.

         O tecto estava construído com fortes vigas de "pau ferro" e assentes nessas vigas estavam apoiadas fortes chapas de latão, aproveitadas dos bidões da gasolina e que suportavam um peso de terra incalculável, com mais de um metro de altura, onde habitavam também as cobras e os ratos, que diga-se de passagem nada nos incomodavam.

         O telhado era coberto de palha de capim, que só os nativos sabiam construir e que resistiam ao vento e às fortes chuvadas que se faziam sentir no Inverno quase sem mexer uma palha.       

         Na parte de fora do abrigo, no sítio mais escondido e abrigado, tínhamos um telheiro também coberto com palha de capim, com uma grande mesa de madeira que servia para comermos, escrevermos, e jogar às cartas.

         Os abrigos estavam vedados com arame farpado e dentro do recinto haviam enormes mangueiras e até algumas bananeiras plantadas por nós. As mangueiras eram o poiso predilecto de uns simpáticos e bonitos lagartos que mudavam de cor conforme o sítio onde parassem, como eram inofensivos nós nem lhes ligávamos embora fossem às dezenas.  De resto o que nos atormentava mais, eram os mosquitos e as melgas que não nos deixavam sossegar e que a todo o momento, nos tentavam devorar.

         As camas tinham de estar equipadas com rede mosquiteira, caso contrário não descansávamos, com tanta ferroada e com tanta comichão.

         Na parte de cima do cais ficavam os comandos, mais propriamente as instalações dos oficiais voltadas para o rio. Paralela a essas instalações a todo o seu comprimento ficava a enfermaria.

         Nas traseiras desses dois edifícios havia um enorme espaço vazio a que nós chamávamos parada. Ao longo dessa parada encontravam-se diversos edifícios, entre eles: a cozinha, a arrecadação dos géneros alimentícios, a secretaria cujo chefe era o sargento Taínha, a nossa cantina-bar, arrecadação de material e armamento, uma caserna do pessoal de apoio ou seja do pessoal não operacional, um pequeno paiol que armazenava granadas e munições, e por último um grande morteiro de calibre 81 que se encontrava junto da cantina-bar, metido num circulo construído em cimento armado tipo poço. No caso de sermos atacados nem o artilheiro nem o municiador viam dali patavina, mas o sistema estava bem montado para o tiro ser dirigido por telemetria, sendo muito preciso.

         Nós os dos postos avançados víamos de onde partiam os rebentamentos do inimigo e depois, por meio de um telefone tipo transmissões, comunicávamos a dar a posição do inimigo por meio de coordenadas e quando atingiam o objectivo dávamos pulos de contentes.

         Tal como nos abrigos o comando também se encontrava vedado com arame farpado, com o objectivo de manter a população à distância, como em qualquer quartel.

         Depois de arrumarmos e ordenarmos todo o material.  De comum acordo escolhemos as camas e ordenámos uma escala para a sentinela da noite (reforço).  Entretanto vieram as lavadeiras oferecerem-se para nos lavarem a roupa por apenas 50$00 por mês.

         Eu escolhi a Huana que era muito bonita e bastante simpática, uma das seis mulheres do meu mais tarde amigo Champion.  Entreguei-lhe a roupa que tinha suja e no dia seguinte pela tarde, já estava de volta com a roupa lavada e passada a ferro.

         Nos abrigos tínhamos dois ou três miúdos como faxinas, com uma idade compreendida, entre os 9 e os 12 anos, que nos limpavam e arrumavam tudo quanto o necessário, inclusivamente iam com as terrinas de inox à cabeça, acompanhados por um de nós, buscar a comida à cozinha no comando.

         No nosso abrigo tínhamos dois que já haviam transitado dos "velhinhos" e portanto já conheciam bem os cantos à casa. Eram o Dante e o Eusébio, este último por sinal meu protegido de quem eu gostava muito, embora também gostasse muito do Dante, mas como ele era mais pequeno com apenas 9 anos, eu dava-lhe mais protecção; de vez em quando na brincadeira para o fazer chatear chamava-lhe cabeçudo e ele dizia:

         - Scherno não chama cabeçudo, mim não gostar.

         Mas eu não resistia e meia volta, volta e meia, lá estava eu a chateá-lo:

         - Desculpa lá Zébio, o Scherno esqueceu que tu não gostar e não chama mais. 

         Passava-lhe a mão pela cabeça e depois de lhe fazer uma série de diabruras, ele acabava por ficar feliz e sorria.

         Aproveito o momento para explicar aos leitores, o porquê da alcunha Scherno.

Com o decorrer dos dias, começou a aumentar o relacionamento e a intimidade dos militares com a população nativa.

         Aconteceu que em vez de me chamarem Serra, começaram-me a chamar Scherno. Eu insistia que me estavam a trocar o nome, mas pouco adiantava e a alcunha acabou por prevalecer.

         Até que um dia me explicaram, que Serra traduzido em crioulo, era precisamente igual a Scherno, na altura franzi o sobrolho, porque me fazia lembrar nome de peixe, mas com o tempo fui-me habituando, de resto os amigos chamavam-me Serra e os familiares Carlos.