SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O  MEU  AMIGO  FIÚZA

 

        

 

egressámos ao aquartelamento e a vida começou a decorrer no seu percurso normal, quando de repente não sei como, fiz-me de pedra e cal com o Fiúza, tornando-nos amigos inseparáveis.  O Fiúza era natural do Estoril, terra que o viu nascer e talvez por isso, ele não se cansasse de a elogiar.

         O Fiúza era alto e bem parecido, tinha cabelo e olhos pretos, com um certo ar de vaidade e importância e evitava sempre dar confiança aos demais.  Começou-me a convidar para jantar e acabava sempre por pagar a despesa.  Como sabia que eu era casado e pai de filhos, calculava que eu não me podia dar ao luxo de voar muito alto e eu acabava sempre por ser seu convidado.  Pouco me falava da sua vida particular e eu a esse respeito pouco ou nada lhe perguntava, mas pela vida que ele fazia comecei a desconfiar que ele devia ser rico e abastado.

         Um certo dia pela manhã estávamos formados na parada e nisto chegou um ordenança com um papel que entregou ao alferes Samaritano. Este depois de o ler virou-se para  o  Fiúza  e  disse: 

         - Estão ali aqueles três senhores ao fundo da Parada que lhe querem falar, portanto vá lá que está dispensado. Nisto olhámos todos e eu reparei nos três senhores, muito bem vestidos de fato e gravata de bom corte.  Fiquei um tanto ou quanto intrigado e quando surgiu a primeira oportunidade perguntei-lhe quem eram os tais senhores. Respondeu-me que lhe queriam comprar uma Herdade.

         - Então e tu vais vender. Perguntei eu:

         - Vou. Faz parte da herança que o meu Pai me deixou. 

         E dito isto pouco mais adiantou.

         No dia seguinte quando acabámos a instrução por volta das 17 horas, disse-me que ia esperar a mulher à garagem dos autocarros.

         Fiquei surpreendido e disse-lhe:

         - Mas tu és casado?

         - Sou mas não tenho filhos, respondeu ele. E de seguida disse para me despachar que também ia com ele e que mais tarde iríamos jantar os três.

         Fiquei de boca aberta com tanta beleza e com o espanto de mulher que ele me apresentou: alta bem constituída, linda, com tudo no sítio, parecia até que tinha sido esculpida pelas mãos delicadas do mais famoso escultor.

         Feita a apresentação fomos dar um passeio pela cidade e ao mesmo tempo procurar uma pensão, onde eles pudessem pernoitar e mais tarde fomos os três jantar. Escusado será dizer que por onde passávamos todos os mirones torciam o pescoço só para admirar a bela senhora.

         Durante o jantar conversámos animadamente. A senhora era dotada de uma grande beleza e simpatia e tudo isso tornava a conversa mais agradável.

         Entretanto a senhora pediu licença para ir ao toallete. Como ficámos só os dois aproveitei para lhe fazer um elogio à esposa, e ele de brincadeira disse:

         - Olha que é pecado cobiçar a mulher do próximo.

         - Por mim podes ficar descansado, porque eu até vou embarcar para a Guiné. Disse eu a sorrir e na brincadeira, ao mesmo tempo que pensava: ‘’os que ficam cá é que podem ser perigosos; e é mesmo um perigo partir para a guerra deixando assim uma beldade à mercê de certos galifões ...’’

         A senhora Fiúza ficou em Estremoz praticamente até à despedida do marido e ambos exigiam sempre a minha presença e companhia, só que eu senti que os devia deixar à vontade, e aos poucos fui-me afastando, perante as insistências de ambos, que não se queriam privar da minha companhia.

         Voltei solitário às tascas para os petiscos (leitão frito, sardinha frita, sopa, pão e vinho) pagava-se pouco e comia-se bem.

         Como já ia sendo habitual, pelas 19 horas entrei na tasca que nós chamávamos a Garagem.  Sentei-me numa mesa discreta e mandei vir o que queria. Depois de comer e beber fiquei triste e pensativo a fumar com o cotovelo apoiado na mesa e a mão no queixo.

         Nisto, o empregado poisou mais um copo de vinho em cima da mesa e disse para eu beber, que assim ficava mais animado.

         - Respondi-lhe que não o tinha pedido e que não queria mais:

         - Mas tem de beber porque aqueles dois senhores que estão ali no balcão fazem questão disso ! ...

         - Visto que é assim, não faço mais cerimónia.

         Depois de ter bebido e pago a despesa, dirigi-me aos dois desconhecidos e agradeci. E a partir daí, era raro o dia em que não nos encontrássemos para petiscar e beber uns copos. 

         E foi assim que através de um copo de vinho, nasceu uma grande amizade entre mim e os dois maiores negociantes de carne de Estremoz naquela época e a sua simpática família, que mais tarde me foi dada a conhecer.  E pela amizade fraterna, trocámos correspondência, durante todo o tempo em que permaneci na Guiné.