SHERNO ou memórias da guerra na Guiné |
A JUNTA MÉDICA
á cansado de tantos exames fui finalmente proposto para a junta médica. Tinha de me preparar para representar nesta peça de teatro que há muito vinha encenando. Eu confiava na minha boa representação e tinha quase a certeza de que a tropa para mim acabava ali, pelo que fiquei satisfeito e ao mesmo tempo nervoso, mas sobretudo tinha de me preparar e acalmar, pois cometer algum deslize seria fatal.
Entretanto a minha companhia estava prestes a embarcar, e eu pensava que desta já me tinha livrado mas pensava muito mal; nem eu imaginava o que o destino me tinha reservado.
No dia seguinte, pelas 15 horas, levaram-me ao Hospital da Estrela e de seguida à presença do médico, que ao longo de mês e meio me assistiu e elaborou todo o meu processo. O médico mandou-me entrar, fiz-lhe a saudação, que ele retribuiu perguntando se me sentia melhor.
De seguida disse:
- Espere um pouco que eu volto já.
Ali fiquei pensativo e nervoso à espera dos acontecimentos.
O gabinete era pequeno e um tanto ou quanto sinistro e sombrio, o mobiliário que o ornamentava era simplesmente uma secretária, uma cadeira e um divã com um colchão e um lençol impecavelmente branco.
Voltou com os dossiers do meu processo debaixo do braço, seguido de outros dois médicos.
O meu médico devia ter de 40 a 45 anos de idade e aparentava ser um homem calmo, mas demonstrava já um certo cansaço e saturação de todas aquelas andanças. Era alto, e bem parecido e lia-se no seu interior uma certa bondade e simpatia. Mandaram-me deitar e de seguida os outros dois médicos, que aparentavam ser muito mais novos começaram a auscultar-me os pulmões e o coração. Depois de alguns sinais e troca de palavras entre eles, que eu não entendi, reuniram no gabinete ao lado durante 10 minutos aproximadamente. Regressaram e mandaram-me levantar, os novatos pareciam satisfeitos e isso não me agradou nada, de seguida os mesmos dois, começaram a bombardear-me com perguntas, talvez durante 15 minutos, não satisfeitos com as minhas respostas, pois eles queriam muito mais, houve um que me perguntou:
- Ouça lá você é muito nervoso não é?
- Sou sim sr. doutor:
- Então quais são os motivos que o levam a ser assim tão nervoso?
- Sabe sr. doutor sou casado, tenho dois filhos e estou a tirar a especialidade de Atirador e querem mandar-me para a guerra no Ultramar e esta situação vai destruindo todo o meu sistema nervoso:
- Isso é grave não duvidamos.
Disseram os dois quase em uníssono.
O meu médico mantinha-se calmo e sereno como um bom observador e quando o olhei nos olhos pareceu-me que ele me dizia:
- Já estragastes tudo rapaz.
Mais uma vez saíram os três, para reunirem no gabinete ao lado, e eu ali fiquei durante mais 20 minutos, à espera do resultado final e ao mesmo tempo a pensar como os dois abutres me tinham feito cair que nem um patinho. E o resultado não se fez esperar: o meu médico entrou só, os outros dois já nem se deram ao trabalho de o acompanhar, também para quê, pois se já tinham cumprido com mérito o desempenho das suas funções e, com uma certa expressão de tristeza na voz, o meu médico disse:
- Pois é meu rapaz estivemos durante este tempo todo a estudar o seu processo e chegámos à conclusão que a sua doença não é grave. É tudo provocado pela sua vida familiar, e a situação não favorece em nada o seu sistema nervoso, portanto da nossa parte é tudo, mas se por qualquer motivo se sentir mal pode voltar. Dito estas palavras desejou-me sorte e felicidades para mim e para os meus.
Não consigo expressar-me com palavras o modo em que fiquei, mas dá para imaginar.
Voltei ao Hospital Anexo para trazer toda a minha bagagem e de lá segui novamente para o Regimento de Cavalaria 7, onde me apresentei ao oficial de dia. Este por sua vez mandou-me apresentar na Secretaria, onde me entregaram um passaporte com 13 dias de licença, recomendando-me que terminado esse prazo se iria formar um batalhão no qual eu seria incorporado.
Entretanto a minha ex-companhia há muito que navegava com destino a Angola, eu dessa tinha-me livrado; vamos ver qual será o meu destino, que como eu sempre acreditei, o destino está na sola dos pés e vai para onde nós caminhamos, seja pois o que Deus quiser.
Terminada a licença lá me apresentei, mas desta vez como repetente, aquilo para mim já não era novidade, os outros eram ainda maçaricos e eu já me ia considerando velhinho.
Entretanto iam-se formando as companhias e os pelotões com destino à Guiné, e eu por sorte do destino, fiquei a pertencer ao 3.º Pelotão, cujo comandante era o então alferes Madureira, homem de bom carácter e de forte personalidade, de estatura mediana, bem constituído fisicamente e com uns olhos verdes penetrantes que transmitiam bondade e simpatia, muito inteligente e competentíssimo como instrutor, sabia ensinar com calma e paciência.
A ele me apresentei começando por lhe contar, que já tinha recebido internamento hospitalar, que era casado e tinha dois filhos, que não aguentava os exercícios mais duros, enfim fui-o preparando, e ele foi sempre compreensível. O alferes Madureira deu-me por diversas vezes alguns dias de licença para passar com a família, além de outros benefícios, que compreensivelmente me concedeu.
Era um homem bom e humano, que subiu na vida a custo de muito sacrifício, trabalhando de dia numa fábrica de tomate e estudando de noite em Alenquer sua terra Natal, onde frequentava um curso de engenharia.