SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

A  FESTA  IA  COMEÇAR

 

        

 

á começara a escurecer e na Guiné a passagem do dia para a noite sucede em poucos minutos, quando fui com o Dante e o Eusébio buscar água a um poço no meio das tabancas. Levávamos dois garrafões e uma lata com uma corda. Comecei a tirar água e de repente ouviram-se dois estrondos de "Very-Lights" e o céu de Jabadá ficou todo  iluminado, de cor amarelo alaranjado. Logo de seguida começaram os tiros e os rebentamentos muito perto de mim. Os miúdos desapareceram como relâmpagos, os telhados das tabancas ardiam por todo o lado e eu inseguro, e todo mijado... Protegi-me atrás de uma mangueira a vê-las rebentar perto de mim, aquilo parecia um inferno. Comecei a fugir tresloucadamente em direcção ao abrigo que ainda ficava distante e acho que devia ter batido o recorde dos 1.000 metros. Entrei disparado pelo abrigo dentro onde pairava o fumo e o cheiro a pólvora. Todos faziam fogo através das vigias na direcção de onde se via o clarão das saídas dos disparos do inimigo, apressadamente peguei na minha G-3 e desenfreadamente comecei a ajudar à festa. Os canos das armas começaram a ficar incandescentes e torcidos, o que nos obrigava a parar durante alguns momentos, excepto as metralhadoras que tinham canos suplentes mas depressa  se  mudavam.

         O arraial durou perto de duas horas e foi terrível. Um autêntico Inferno se assim se pode chamar, mas tinha também uma certa beleza: o céu todo iluminado pelos ‘’Very-Lights’’; as granadas rebentando no ar provocando fogo de artifício, fazendo-nos lembrar um arraial de festa numa aldeia da metrópole.

         No final estávamos todos exaustos, mas era preciso começar o reforço. Eu fiz a primeira sentinela durante uma hora e meia. O cacimbo caía e o calor apertava. Os mosquitos zumbiam à minha volta, insistindo em me devorar as orelhas. Fui buscar um cachecol e enrolei-o de maneira a deixar só os olhos a descoberto e só assim me deixaram em paz.

         No dia seguinte saímos logo pela manhã, para irmos fazer o reconhecimento ao local de onde o inimigo nos atacou, acompanhados por sete milícias que passariam a fazer parte do nosso pelotão.

         Feito o reconhecimento notámos que havia manchas de sangue no solo e pela erva fora, o que nos levou a crer que lhes tínhamos causado baixas. Isso era bom sinal, pois que deste modo começávamos logo no primeiro dia a mantê-los em sentido e respeito.

         Os milícias eram uma tropa de nativos que lutava ao nosso lado, muito conhecedores do mato e da guerra  que em parte nos valeram muito, dando-nos a conhecer  a selva  e  os  perigos  que  escondia.

Depois  de  averiguarmos  o  terreno  seguimos satisfeitos dado o "ronco" (ronco: festa, bom, bonito, maravilhoso) que fizemos na noite anterior. 

         Conforme caminhávamos pela mata comecei a notar que os milícias nos tentavam arrastar sempre para as picadas, carreiros ou trilhos, conforme lhe queiram chamar, e comecei a pensar que na metrópole nos ensinaram a nunca andar por picadas, devido às minas que o inimigo nelas colocava. Comecei a desconfiar dos milícias e a ficar intrigado, não compreendendo como é que o alferes Samaritano se deixava enrolar nessa onda, quando logo à partida todos nós sabíamos e estávamos informados, que a mata era um autêntico barril de pólvora, com minas colocadas em tudo o que era sítio, principalmente nas picadas. Pensei que havia qualquer coisa que não estava bem e que o melhor era pôr-me à defesa e passar a tomar atenção aos pés dos da frente principalmente os dos milícias, que andavam sempre no princípio da coluna.

         Quando caminhávamos em campo aberto, a coluna era formada com uma distância entre nós de 5 em 5 metros, evitando assim, em caso de ataque, um menor número de feridos.

         No dia seguinte saímos novamente, agora para a defesa apertada, que consistia na montagem de emboscadas. Como éramos quatro pelotões operacionais, normalmente saía um pelotão de manhã e outro à noite, e assim sucessivamente nos rendíamos, excepto quando havia operações de três ou quatro dias que era o máximo que nós aguentávamos devido ao calor e à falta de água.

         Nas operações alinhavam quase sempre dois ou três pelotões ficando o resto do pessoal a guardar o aquartelamento, mas o maior sacrifício era à noite, pois que tínhamos de nos dividir pelos abrigos para o reforço e como éramos poucos acabávamos por fazer 2 ou 3 horas cada um. E se nos atacassem tínhamos de nos defender com unhas e dentes, porque os cabrões sabiam que nós éramos poucos e atacavam-nos até à exaustão.

         Os ataques do inimigo ao aquartelamento sucediam-se quase que diariamente e por duas ou três vezes até se aventuraram a aproximar do arame farpado.  Começámos a notar que quanto menos lhes respondêssemos mais depressa eles desistiam e se iam embora.

         Reconhecemos mais tarde que esta reacção se devia a eles pensarem que poderiam estar alguns dos nossos emboscados na mata ou preparando-se para os atacar por trás - o que de facto muitas vezes sucedia, e nesse caso seriam apanhados desprevenidos, não poderíamos por isso responder aos ataques do inimigo pois sujeitávamo-nos a matar algum dos nossos. Era por este motivo que devido ao nosso silêncio eles acabavam logo por dispersar.

         Embora o material bélico deles fosse muito superior ao nosso, com o tempo e a experiência que fomos adquirindo fomos deixando de os temer e quase sempre os enfrentávamos sem medo.

         A maior parte do material deles era de origem soviética, embora por vezes também capturássemos americano, alemão, francês, chinês e checoslovaco.

         O tempo ia lentamente passando e eu ia anotando num caderno alguns acontecimentos dignos de registo, ao mesmo tempo que dava baixa de mais um dia e dava graças a Deus por ainda pertencer ao mundo dos vivos.

         Quando não saíamos, aproveitava o tempo para limpar e lubrificar a arma ou então dando uma volta pelo meio das tabancas, visitando sempre a minha lavadeira Huana, que cada vez mais dava a entender que morria de amores por mim, e o certo é que eu também lhe correspondia.

         De vez em quando comprava bolachas, chocolates, latas de leite etc. e dava aos miúdos nas tabancas, inclusivamente comprava também cerveja para oferecer aos homens grandes e deste modo fui conquistando a amizade e simpatia da população.

         Numa tarde saímos para mais uma emboscada e quando deixávamos o capim para entrar na mata, eis que toda a coluna se atira para o chão e desata a abrir fogo. Eu estava no meio da coluna e não conseguia ver o que se estava a passar. Só sei dizer que mal podia levantar a cabeça, porque as balas me passavam a arrasar devido aos disparos dos que se encontravam atrás de mim.  De repente vejo vir na nossa direcção uma pobre gazela, tentando fugir arrastando-se com as patas dianteiras, já com a parte traseira quase cortada. O inimigo afinal era uma gazela.

         Os milícias ficaram incumbidos de transportar a gazela, atando-lhe as pernas num pau e dois de cada vez carregavam com ela ao ombro.

         Tudo levava a crer que íamos ter rancho melhorado, mas estávamos muito mal enganados porque o que nos tocou, foi as costelas e os pêlos, com batatas à cambalhota. Eu nem sequer lhe toquei. A minha parte dei-a ao Dante e ao Eusébio que até nem eram esquisitos, mas para mim aquilo até metia nojo. por se encontrar cheia de pêlos do animal, devido à carne ser mal limpa.

         Mas nós com o tempo começámos a ignorar os animais e a deixá-los passear em paz e sossego, pois quem lhes comia a febra que os matasse e carregasse.