SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O  RIO CORUBAL ESTAVA INFESTADO DE CUBANOS

 

        

 

essa noite, quando já dormíamos vieram‑nos acordar a dizer para nos prepararmos que íamos sair para uma operação às duas horas da manhã.

         Partimos acompanhados de mais dois pelotões de Fulacunda "Os boinas negras", e devíamos de ser talvez cem homens, comandados pelo capitão Carlos de Almeida, que na altura contava apenas vinte e nove anos de idade.

         Caminhámos durante sete horas, praticamente sem pararmos. Quando chegámos a uma margem do rio Corubal, já exaustos, deviam ser nove horas e trinta. O capitão deu ordem para pararmos e descansarmos por breves momentos.

         Imediatamente nos pusemos à vontade, aliviando logo o peso que carregávamos.

         Enquanto uns comiam parte da ração de combate que levávamos, outros como eu, deitámo‑nos ao comprido na erva. Estava tudo tão calmo e pacífico que por momentos até pensei que estávamos no Paraíso.

         Entretanto para nossa sorte, o Lôrpa disse que lhe doía a barriga e afastou‑se a fim de fazer uma necessidade fisiológica.

         Arriou as calças e prostrou-se distanciado de nós atrás de uma árvore, pronto a evacuar.

         Segundo nos contou mais tarde, conforme se encontrava de cócoras, começou a ver por entre as ramagens mais tropa que se aproximava e por momentos até pensou que faziam parte dos nossos, uma vez que a maioria eram brancos. Mas quando os começou a ver curvados e olhando silenciosamente de um lado para o outro, com as armas em riste e prontas a disparar, não teve dúvidas que eram dezenas de cubanos e guineenses que nos estavam a cercar.

         Recordo como se fosse hoje: o Lôrpa a correr com as calças na mão, gritando desesperadamente:

         - Turras! Turras! Turras!

Ao mesmo tempo que os cabrões enraivecidos disparavam incessantemente sobre ele como se fosse o único alvo a abater.

         O Lôrpa conseguiu refugiar-se atrás de uma árvore e foi tudo tão rápido que já não houve tempo para ver mais nada, a não ser pegar nas armas e defendermo‑nos desesperadamente.

         Em segundos ficámos encurralados num autêntico Inferno, com os filhos da puta a dispararem de todos lados, inclusivamente de cima das árvores, onde já se tinham fixado, prontos a abaterem‑nos facilmente um a um, como quem mata coelhos. E se não o fizeram foi graças à dor de barriga do Lôrpa.

         A confusão gerou‑se de tal maneira, que não sabíamos para onde disparar. ­Até que o jovem e valoroso capitão se pôs de pé, de peito aberto e sem medo, a indicar-nos com a Vaultier na mão, apontando os inimigos em posições estratégicas que se encontravam escondidos em cima das árvores.

         Se disparar de cima de uma árvore tem as vantagens da surpresa e de um bom campo de tiro, tem também a desvantagem de se tornar um alvo fácil. Um tiro de bazuca, mesmo que não acerte em cheio faz desaparecer as copas das árvores a toda a volta, incluindo os macacões que nelas estão aos tiros.

         Nunca percebi porque é que eles não conseguiram acertar-nos.

         Aqueles mercenários cubanos deveriam ser vesgos ou maus atiradores.

         O Lôrpa conseguiu, a rastejar, a correr, às cambalhotas, a cair e a levantar‑se, chegar junto da arma. Pegou‑lhe e, como um louco começou a disparar abrigado atrás de uma árvore perto de mim. Só que os filhos da puta dos cubanos tinham-no marcado e continuavam persistentemente a persegui‑lo. E nós ali éramos alvos fáceis.

         Até que a árvore onde eu me abrigava, começou a ficar toda descascada, com as balas a passarem perto da minha cabeça ... d' zim ... d' zim ... zim ... As balas a zumbirem e eu a tentar fugir sem conseguir, porque os cabrões já me tinham marcado a mim também, possivelmente por termos mandado algum dos deles para os porcos.

         Tinha de fugir dali antes que fosse tarde, custasse o que custasse, porque ali era um homem morto.

         Desesperadamente, como um louco desatei a correr e às cambalhotas, com as balas dos cabrões, felizmente maus atiradores, a rasarem‑me o corpo e principalmente a cabeça.

         Até que consegui um abrigo mais seguro. E passados segundos, porém,  entrei em pânico  ao sentir que a arma já não disparava, Fiquei alarmado, quando de repente vi, que no espaço de poucos minutos, tinha despejado quatro carregadores.

         Estava reduzido a um de vinte balas e duas granadas ofensivas que trazia nos bolsos das calças.

         O jovem capitão vendo que nos encontrávamos em apuros e sem grandes hipóteses de lhes fazermos frente, deu ordem para retirarmos, antes que ficássemos sem munições e fossemos todos abatidos ou apanhados à mão. E nesse caso era preferível guardarmos a última bala para nós, a sermos torturados pelos cabrões dos cubanos.

         Começámos a retirar, debaixo do fogo intensivo dos sacanas que se encontravam armados até aos dentes e vendo que fraquejávamos, carregavam ainda com mais força sobre nós, incessantemente sem pararem, ao mesmo tempo que pairava no ar um cheiro fétido e nauseabundo, misturado com o fumo da pólvora que nos entontecia e cortava a respiração. Os ouvidos zumbiam e os tímpanos quase rebentavam, devido à infernal barulheira causada pelos rebentamentos de granadas, e disparos das metralhadoras e armas ligeiras.

         Fugimos à frente dos violentos rebentamentos de morteiro, que conforme rebentavam à frente e atrás de nós, nos faziam levantar os pés do chão.

         Quando conseguimos entrar dentro da mata cerrada e os deixámos de ouvir, o capitão mandou‑nos parar, e fez o balanço dos acontecimentos. O resultado fez com que praticamente se gerasse o pânico entre nós.

         As metralhadoras pesadas tinham as fitas vazias e sem munições não serviam para nada. Os morteiros estavam igualmente sem granadas. Restava‑nos uma reduzida quantidade de munições de G ‑3, e algumas granadas de mão.

         Tornava‑se cada vez mais urgente pedir reforços, antes que fossemos todos dizimados pelos cabrões dos cubanos.

         A sorte até agora tinha estado do nosso lado e por mais incrível que pareça nenhum de nós sofreu o mais pequeno arranhão.

         Tentava‑se desesperadamente comunicar com o quartel através dos rádios pequenos. O rádio grande para nossa desgraça foi atingido e deixou de funcionar. Agora só nos restavam os pequenos que transmitiam a curta distância e como nos encontrávamos a muitos quilómetros do quartel, já ninguém nos ouvia e desta feita é que estávamos completamente tramados.

         Fomos prosseguindo, ocultando-nos e embrenhando-nos pela selva "amiga", sempre na esperança de acontecer algum milagre.

         Arriscámos a sair da mata e começámos a atravessar uma bolanha. Quando nos encontrávamos praticamente a meio, os cabrões já nos esperavam do outro lado e mal nos aproximámos descarregaram a artilharia sobre nós.

         Recuámos e embrenhámo‑nos novamente na selva, completamente à deriva, sem sabermos em que direcção prosseguir.

         Começámos a ficar nervosos e desorientados, porque aquela zona do rio Corubal estava completamente infestada de "turras" e ao passo que o tempo ia passando mais nós vivíamos o terror de sermos apanhados à mão, dado a enorme quantidade que eles representavam de talvez quatrocentos homens, olhando ao nosso reduzido número de cerca de cem.

         Ainda por cima, vivíamos naquela zona com o fantasma do maior desastre de toda a guerra colonial. Foi ali no rio, bem perto de nós, que tragicamente morreram afogados na manhã do dia 6 de Fevereiro de 1969, quarenta e sete dos nossos valorosos soldados.

         Todas estas terríveis recordações nos transmitiam pavor e nervosismo, aumentando-nos cada vez mais a tensão de viver um terrível pesadelo, em maus lençóis e acordados.

         Conforme caminhávamos íamos pensando que se até ao cair da noite não acontecesse algum milagre, seria muito mais fácil para eles apanharem‑nos à mão. Perseguiam-nos há perto de cinco horas e já era a quarta vez que tentávamos atravessar bolanhas em pontos diferentes, e de todas a vezes eles estavam emboscados do outro lado à nossa espera.

         A situação estava a ficar cada vez pior e no nosso caso sem meio de defesa. A cada minuto que passava estava-se a tornar deveras dramático e aterrorizante O desespero era tão fatal que nós já nem acreditávamos em milagres nem em nenhuma tábua de salvação onde nos pudesse-mos agarrar.

         Até que por volta das dezasseis horas, apareceu, por pura coincidência, um helicanhão a sobrevoar as nossas cabeças.

         Imediatamente comunicámos a informar que estávamos em apuros e quase a sermos apanhados há mão, uma vez que nos encontrávamos sem munições.

         O piloto após ter recebido o nosso desesperado e aflitivo S. O. S., disse que ia comunicar imediatamente para Bissau e que entretanto nos acalmássemos, que ele iria ficar por ali, sobrevoando para nos proteger com o canhão do helicóptero pronto a disparar ao menor indício de perigo.

         De um momento para o outro sentimo‑nos protegidos. E demos graças a Deus, pelo milagre que nos concedeu.

         Passados praticamente quinze minutos, vieram dois aviões supersónicos Fiat, carregando bombas de Napalm.

         Imediatamente entraram em contacto connosco, a pedir o ponto de referência onde nos encontrávamos. E sem perda de tempo nos mandaram afastar para um sítio onde não fossemos atingidos pelos seus bombardeamentos.

         Depois de nos deslocarmos, novamente lhes dissemos o ponto onde nos encontrávamos e eles, com a devida precaução, deram início ao "festival".

         Para mim foi um espectáculo nunca visto, digno de ser admirado com alegria, principalmente por todos aqueles que assistiram por perto e que viram naquele espectáculo a sua única salvação, quando já se encontravam desesperados e prestes a serem apanhados à mão.

         Os Fiat elevavam‑se até quase se perderem nas nuvens, com uma velocidade superior ao som. Depois desciam velozmente e quando passavam a arrasar as árvores, largavam as grandes ameixas de Napalm, que quando rebentavam nós levantávamos os pés do chão, ao mesmo tempo que toda a Guiné estremecia.