SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

OS PÁRA‑QUEDISTAS

 

        

 

esembarcaram em Jabadá, dois pelotões de pára‑quedistas e logo de seguida o capitão Capucho mandou‑nos formar na parada do Comando, e informou‑nos que aquela tropa "especial" tinha vindo de Lisboa, onde tinham tirado a recruta e a Especialidade de Atiradores. Estavam ali para tirarem o I. A. 0. (Instrução de Aproveitamento Operacional) e que para isso contavam com a nossa boa colaboração. Para os instruirmos e, principalmente, para que os  ensinássemos a conhecer o mato.

         Os Pára‑Quedistas foram distribuídos pelos abrigos e nós até ficámos satisfeitos, porque pensávamos que eles nos vinham dar uma grande ajuda, tanto no reforço, como nas emboscadas e ataques ao aquartelamento. O que aliás, até aconteceu.

         No dia seguinte saímos os do 4.º pelotão, logo pela manhã com "eles" para o mato. Logo nesse dia notámos que o seu comportamento no mato, era inconsciente e irresponsável.

         Fumavam e falam, como se andassem por acaso a passear num parque de diversões. E ainda por cima, não tomavam atenção ao sítio onde punham os pés.

         Todos estes péssimos comportamentos, nos levaram a crer que tinham sido muito mal instruídos e que a instrução que levaram foi muito inferior à nossa, que pertencíamos à tropa macaca, enquanto eles eram uma tropa privilegiada e, segundo diziam, classificada com o rótulo de Elite.

         Mas isso para nós era absolutamente cagativo. O que nos preocupava verdadeiramente, era o facto de eles não terem a mínima  consciência dos perigos que a mata escondia. E a sua leviandade punha em risco as nossas vidas, já com dezanove meses de sofrimento e pesar.

         Por muito que lhes fizéssemos ver todos os perigos iminentes, dizendo‑lhes vezes sem conta, que as nossas vidas na mata andavam presas por um fio e que a qualquer segundo podíamos ir desta para melhor, eles continuavam sempre na mesma, incluindo o alferes, e os dois furriéis que os comandavam, que ficavam alheios ao comportamento dos seus subordinados.

         Ainda por cima, tinham o péssimo defeito de tirarem a bala da câmara, quando regressávamos ao quartel. Embora nós lhes fizéssemos ver que não havia necessidade, porque para evitar algum incidente trágico ou mesmo fatal, bastava meter a patilha da arma em segurança, eles não ligavam e continuavam sempre na mesma.

         Como nós já éramos velhas ratazanas,  mal chegávamos perto do aquartelamento e eles se punham a tirar as balas da câmara, afastávamo‑nos para o lado.

         Nós entendíamos que eles não tinham grande necessidade de conhecer o mato porque a guerra deles ia ser feita em Bissau e só muito raramente se iriam deslocar para socorrer a ‘’tropa macaca’’, quando se encontrava em apuros debaixo do fogo, dos guerrilheiros do P. A. I. G. C.

         Mas quando havia essa terrível necessidade, eles só apareciam e acabavam por saltar dos helicópteros, quando tudo já estava calmo e pacífico.

         Quando regressavam a Bissau diziam que foram eles os nossos salvadores e gabavam‑se nas esplanadas e cafés que eram uns valentões e uns grandes heróis, assambarcando deste modo com os louros para eles.

         E foi talvez devido a essas gabarolices, que certamente chegaram aos ouvidos das Altas Patentes, que decidiram dar‑lhes instrução diferente, fazendo‑os alinhar no mato pelo menos durante quinze dias, que era para saberem o que é comer o pão que o diabo amassou.

         Acabámos por nos unir e decidimos recusar as saídas para o mato, com os pára‑quedistas, porque o comportamento deles punha as nossas vidas em perigo.  Uma vez que chegámos aos dezanove meses, já agora pedíamos para nos deixarem sós caminhando até atingirmos o fim da picada.

         Quando chegou a próxima saída recusámo‑nos e dissemos os motivos porque não queríamos sair com eles.

         O capitão pára‑quedista era homem de grande personalidade e compreensão. Sem perda de tempo, reuniu‑se com os Alferes e Furriéis seus subordinados e mais tarde com o capitão Capucho.

         Passado pouco tempo mandaram‑nos formar e o capitão pára‑quedista, falou dizendo que lamentava a falta de zelo e experiência dos seus homens e que por esse motivo nos pedia paciência e compreensão.

         Depois de mais algumas palestras, nós acabámos por ceder e logo nesse preciso momento saímos com um dos Pelotões que lhe pertencia, mas contrariados, porque conforme os dias iam passando mais tormentosas se tornavam para nós as saídas para o mato.

         Os rapazes, a partir desse dia começaram a ter um comportamento excepcional e exemplar, e nós satisfeitos chegámos até a esquecer os antecedentes, porque na realidade não havia nada que se lhes apontasse.

         Já poucos dias faltavam para partirem para Bissau e numa das últimas saídas que tivemos com eles ia acontecendo uma catástrofe.

         Quando regressávamos de uma emboscada e já perto do quartel eles começaram a tirar as balas da câmara das armas, e conforme o faziam nós íamos caminhando lentamente em fila indiana.

         Nisto, há um deles que dá o tiro para se certificar se de facto havia alguma bala na câmara, mas fê-lo inconscientemente, porque em vez de apontar a arma para o ar apontou‑a a direito e foi atingir o rabo de uma das duas granadas de bazuca  que o da frente transportava às costas, presas com uma correia pela cabeça.

         Ainda hoje revivo esse pesadelo, que por milagre não deu em tragédia, porque no caso de ter rebentado, não tinha sido só a que foi atingida, mas sim as duas, pois que a outra teria rebentado também por simpatia e o rapaz que as transportava teria ficado reduzido a pó, com a agravante de a maioria de nós ficarmos todos estilhaçados, não evitando que mais alguns, tivessem de entregar a alma ao Criador.

         Perante o que poderia ser uma tragédia, e que graças a Deus acabou por se transformar em milagre um dos furriéis pára‑quedistas, foi direito ao assustado rapaz e como um louco, começou‑lhe a desfechar socos. O pobre do rapaz caiu no chão e tentou proteger a cabeça com os braços e as mãos, enquanto o furriel de estribeiras perdidas, se preparava para o pontapear. Nós corremos para ele e segurámo‑lo, prendendo‑lhe os movimentos, caso contrário teria deixado o rapaz em muito mau estado.

         Todos estes incidentes podiam ser evitados, se eles passassem a proceder como nós. Evitariam assim cenas graves, desastrosas e do mais alto risco.

         E foi preciso acontecer este desastre para passarem a proceder como sempre lhes fazíamos ver. Felizmente aprenderam a lição e a partir desse dia, nunca mais tiraram a bala da câmara.

         Durante os poucos dias que por lá ficaram, nós notámos com agrado que eles tinham aprendido bem tudo quanto lhes tínhamos ensinado e que a partir daquele momento, estavam aptos a caminhar pela mata sem problemas, porque já tinham a sabedoria e a consciência dos perigos que os espreitavam a cada passo que davam.

         O capitão pára‑quedista não quis dar as despedidas sem nos presentear com um banquete.

         Comprou uma vaca, e mandou vir bolos e bebidas de Bissau. Improvisaram‑se mesas e bancos com tábuas, que dispusemos na parte da frente da enfermaria voltadas para o rio.

         Por volta das treze horas acomodámo‑nos e começámos a almoçar: carne estufada com batatas cozidas. As horas foram passando na maior das alegrias e camaradagem, até que o capitão pára‑quedista se levantou e começou a discursar, dirigindo‑nos palavras de agradecimento, elogiando‑nos pelo nosso comportamento e sentido de responsabilidade.

         Agradecemos com palmas todas as palavras amistosas que nos dedicou e depois de brindarmos à sua saúde, começámos a dispersar, até que passado pouco tempo atracou no cais uma L. D. M. . E com abraços e cumprimentos  pela amizade e o bom relacionamento que se constituiu entre nós, lá nos fomos despedindo ... até que embarcaram e partiram rumo a Bissau.