SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

OS DRAGÕES DA BOLACHA

 

        

 

s dias decorriam o mais bem passado quanto possível. À noite juntávamo‑nos no campo de futebol, com as negras e os negros, e dançávamos ao som do batuque. Improvisávamos chocalhos com latas de coca‑cola, que enchíamos de caricas, e atávamos nos braços e nas pernas, porque o que importava, era chocalhar e fazer barulho. O pior era quando rebentava algum ataque e nós tínhamos de fugir a toda a velocidade, à procura de um abrigo.

         De resto era tudo alegria. Como a velhice era um posto e nós já andávamos meio cacimbados e apanhados pelo clima, já nada nos metia medo ... excepto as saídas para o mato e as malditas minas, que era o que mais temíamos e o que mais nos atormentava.

         O capitão Duro Capucho insistia na guerra psicológica e numa tarde deu ordem para nos deslocarmos a Gã-Chiquinho, uma aldeia que se situava numa das margens do rio Geba, a poucos km da fronteira com o Senegal. A ideia era irmos adoçar a boca à população.

         No inicio da tarde veio uma L. D. M. (Lancha de Desembarque Militar) para nos transportar: 1.º e 4.º pelotões. Levávamos na bagagem dois barris de vinho e diversos pacotes de bolachas, incluindo também vários cunhetes de munições para no caso de haver confronto estarmos prevenidos.

         Desembarcámos na margem do rio junto da aldeia levando depois os pipos do vinho a rebolar pelo chão e fomos recebidos pela população com alguma manifestação de alegria forçada, o que nos fez sentir uma certa desconfiança.

         Depois de montarmos o dispositivo de segurança e de colocarmos as sentinelas, começámos por juntar os pipos do vinho, as bolachas e por último os cunhetes das munições, que discretamente colocámos no meio do capim, perto de nós.

         Logo de seguida começámos a oferecer as bolachas, enquanto que outros iam abrindo os pipos e distribuindo o vinho. 

         Enquanto a população ia comendo e bebendo, nós afastámo‑nos e pusemo‑nos à vontade, encostando as armas às árvores e pendurando as cartucheiras nos troncos. A maioria de nós, tínhamos levado o dolmen vestido, ou seja o casaco de camuflado, por ter mais bolsos para transportarmos as bolachas, mas tinham o inconveniente de nos fazer mais calor, e por esse motivo mal chegámos despimo‑lo e pendurámos nas árvores.     Ficámos deste modo, praticamente todos em tronco nu e à vontade.

         Fumávamos e conversávamos, e não nos apercebíamos do que se estava a passar à nossa volta. Embora já tivéssemos notado que alguns dos homens, não comiam nem bebiam e que através das palhas que pendiam dos alpendres das tabancas nos olhavam disfarçadamente de soslaio. De repente deixámos de os ver.

         Eu ia conversando com o Luca e ambos estávamos de pé. Eu mantinha‑me encostado ao tronco de uma árvore onde tinha pendurado o meu dolmen, mas sempre desconfiado, com um olho no burro e outro no cigano.

         Nisto o Açoreano chamou‑me. Mal cheguei junto dele, rebentou um violento ataque e em fracções de segundos estávamos todos no chão, a rastejar na direcção das armas, excepto o Luca, que se rebolava gritando que estava todo estilhaçado.

         O ataque continuava e mesmo debaixo do tiroteio alguns de nós corremos para socorrer e proteger o Luca, que se encontrava com as costas cheias de estilhaços, devido ao rebentamento de uma granada de morteiro do inimigo.

         O Fidalgo prontamente lhe começou a fazer os curativos, o melhor que pode e sabia, mas como felizmente nenhum dos estilhaços lhe atingiu algum ponto vital, ele acabou por se levantar,  corajosamente pegou na arma e, tal como nós, defendeu-se que nem um herói, porque a coragem não é mais que ter medo e conseguir vencê-lo.

         Até que se gerou a confusão total do costume, com rebentamentos por todo o lado, quando, de repente, vimos alarmados o capim a arder, tocado a vento com as chamas a virem ferozmente na nossa direcção e rodeando já os cunhetes de munições.

         Estávamos completamente encurralados, entre as balas do inimigo e o fogo do capim que progredia cada vez mais. Se algum dos caixotes de munições rebentasse ficávamos feitos em fanicos.

         Já em completa desorientação por vermos que era quase impossível tirar os cunhetes do meio das chamas, vimos o alferes Souto França a correr por entre o fogo e a esquivar-se das balas, na direcção dos caixotes, começando a mandá-los para dentro do rio com uma força sobrenatural. Salvando-nos assim de um pesadelo que certamente nos iria marcar desastrosamente, pois ninguém se salvaria.

         Este foi sem dúvida um grande acto de coragem e heroísmo do alferes Souto, que arriscou a vida em prol dos seus soldados, resultando desse acto, infelizmente para ele, graves e dolorosas queimaduras  nas pernas, nas mãos e nos cabelos.

         Mas nem mesmo os ferimentos o fizeram desvanecer e sem perder tempo, ele e o alferes Oliva Samaritano, organizaram o pessoal e de imediato fomos em perseguição dos sacanas, seguindo-lhes o rasto até há fronteira, onde eles já do lado de lá e com as costas quentes nos tentaram alvejar com mais alguns disparos.

         Visto já não pudermos fazer nada, retrocedemos novamente pelo meio do capim onde a noite caiu escura como breu.

         Cansados e exaustos, palmilhámos km atrás de km pelo meio da selva, escura silenciosa e traiçoeira, sob a orientação do valoroso alferes de 2.ª linha Seco Camará, que conhecia a selva como a palma das suas mãos.

         Chegámos a Jabadá pela madrugada, consumidos pelo cansaço e a precisar de dormir, nem que fosse em cima de uma pedra.

         Conclusão: os cabrões cagaram-se no vinho e nas bolachas e ao mesmo tempo quiseram-nos provar que não era assim que se ganhava a guerra. E o certo é que por causa da "merda" da guerra psicológica, íamos todos indo para os porcos.

         E mesmo assim acabámos por trazer dois feridos, embora reconhecêssemos que podiam ter sido muitos mais. Felizmente que  a  sorte  esteve  do  nosso  lado.

         O Luca não precisou de receber tratamento hospitalar e só lhe poderiam extrair os estilhaços ao fim de um ano. Ou seja quando se fixassem, porque até lá, andariam sempre a deslocar‑se de um lado para o outro. O alferes Souto França, ainda teve de suportar as queimaduras durante um longo tempo.

         As outras companhias do Batalhão e outros destacamentos em Bissau, quando tiveram conhecimento do sucedido, passaram a chamar-nos "Dragões da Bolacha" ... alcunha sem dúvida bem aplicada.