SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O FURRIEL GINJA E O CAPITÃO MÉDICO DR. ROBALO

 

        

 

omo já disse anteriormente, as emboscadas e os reconhecimentos tornavam‑se a cada dia que passava um osso cada vez mais duro de roer. E devido a tanto sacrifício, começámos a ficar doentes e cansados. Uns com tosse e dores nas costas, outros com dores de garganta.

         E todas esta mazelas eram provocadas, principalmente, por horas e horas a caminhar debaixo de chuva ... e parados também, em emboscadas. Uma vez estivemos praticamente três horas debaixo de chuva torrencial sem nos pudermos movimentar, encharcados até aos ossos, pois que quando regressávamos fomos surpreendidos com o inimigo a começar a atacar o quartel, a talvez uns escassos 200 ou 300 m do sítio onde estávamos.

         Não tivemos outra saída se não ficar quietos e deixar que eles descarregassem a artilharia, para que depois pudéssemos regressar ao aquartelamento. Encharcados até aos ossos, mas felizmente inteiros.

         Esta grande chuvada marcou-nos bem o físico. Durante alguns dias andámos a sofrer de asma e com a sensação incomoda de termos constantemente um gato a miar dentro de nós.

         Mas nem só a chuva nos destruía porque outros como eu, caíamos na cama, a arder em febre com o Paludismo, que era provocado pelas picadelas das melgas e dos mosquitos, que nos injectavam o vírus da doença.

         Ao mesmo tempo noutras zonas do nosso sector o pessoal encontrava-se praticamente nas mesmas condições de saúde.

         Principalmente em Fulacunda onde se encontrava o 1.º pelotão sob o comando do alferes Souto França.

         Entre os muitos doentes encontrava-se o furriel Ginja que pertencia a um pelotão da Companhia de Fulacunda a arder em febre e com graves problemas na garganta.

         Segundo a versão que me contaram, o furriel uma manhã foi consultado pelo capitão médico dr. Robalo, que o medicamentou e lhe disse que não era nada de grave.

         Porém da parte da tarde, o furriel Ginja recebeu ordem para sair para uma emboscada com o pelotão onde pertencia.

         Meteu os pés a caminho e foi procurar o dr. Robalo, acabando por o encontrar no pátio anexo aos aposentos dos oficiais, onde ele se encontrava a conversar animadamente com o comandante.

         O furriel dirigiu‑se ao médico e disse‑lhe:

         - O senhor doutor consultou‑me de manhã e por isso sabe que eu não estou em condições de sair para as emboscadas. Peço-lhe portanto o favor de me dispensar de qualquer serviço, pelo menos enquanto me encontrar assim doente.

         O médico respondeu‑lhe que não o dispensava porque o que ele tinha era ronha e não nenhum mal na garganta. O furriel Ginja fartou-se de insistir mas o médico não cedeu.

         Já pelo entardecer quando todo o pelotão do furriel  se encontrava pronto para sair, surge o dr. Robalo com uns copos de Whisky a mais no bucho e começou a provocar insistentemente o furriel à frente dos seus soldados chamou-lhe cobarde e outros palavrões.

         O furriel Ginja acabou por perdeu as estribeiras e sem proferir palavra, apontou-lhe a G - 3 e desfechou-lhe dois tiros, que o atingiram num braço e entre as pernas.

         O médico  contorceu‑se com dores e acabou por se enrolar no chão, enquanto o comandante que se encontrava perto surgiu a gritar por socorros, tentando reanimar o médico, mas infelizmente sem qualquer resultado.

         O furriel Ginja foi imediatamente preso sem oferecer resistência, seguindo mais tarde para o Forte de Bissau, onde se comprovou ter de facto, um mal bastante grave e doloroso na garganta.

         O capitão médico seguiu para o Hospital Militar de Bissau, onde urgentemente foi operado, mas infelizmente sem qualquer êxito.

         Veio mais tarde para Lisboa, onde durante três meses esteve internado ficando drasticamente assinalado, com os órgãos paralisados e coxo.

         Era um homem alto, forte e bem constituído, aparentando ter talvez 37 ou 40 anos. As opiniões dos soldados divergiam em relação ao dr. Robalo: uns diziam que ele era um carrasco e que não dava baixas a ninguém, enquanto que outros como eu, dizíamos que ele era bom médico, simpático e atencioso.

         Pessoalmente nunca me posso esquecer do mês em que estive em Bissau na consulta externa, o que me foi concedido por ele.

         Lamentei o acto louco e criminoso do furriel Ginja e mais ainda a fatalidade do dr. Robalo. No entanto fiquei deveras triste e condolente, tanto pelo azar de um, como pela prisão e doença do outro.

          Graças às influências e sentido de justiça do capitão Duro Capucho o furriel Ginja acabou por ser restituído à liberdade poucos meses após a sua prisão, acabando infelizmente por se comprovar que ele tinha de facto um grave problema na garganta.