SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

A EMBOSCADA FALHADA

 

        

 

hegámos mais uma vez a Tite em Junho do ano 1970. Estávamos precisamente com 16 meses de campanha.

         Fomos distribuídos pelos abrigos dos operacionais e logo nessa noite ouvimos o Cuxixo a falar na Rádio Voz da Liberdade.

Disse que estava bem e  a ser bem tratado ... e só faltou dizer que quase o estragavam com mimos.

         Falou também que já lhe tinham dado três países à escolha, para voltar a refazer a sua vida normal. Que tinha tomado aquela decisão, porque acabou por compreender que não tinha nada a ver com aquela guerra ... cruel e injusta, mas que no entanto não criticava aqueles que nela continuavam erradamente.

         Terminou referindo‑se aos oficiais da Companhia mais propriamente ao capitão Capucho. Dizendo que nada tinha contra eles, porque sempre o trataram bem e com dignidade.

 

         O Cuxixo, regressou a Portugal logo após a revolução de 25 de Abril de 1974.

         Segundo a versão que me contaram, foi capturado e levado para o Regimento de Cavalaria 3 em Estremoz, onde pertencia.

         Não o encarceraram na prisão, mas também não o deixavam sair do quartel.

         Até que os gases lhe começaram a bater na moleirinha ... e o Cuxixo sempre a insistir para que o deixassem vir embora ... porque não tinha feito mal a ninguém, e por esse motivo não tinham o direito de o reter ali como prisioneiro.

         Um dia variou e se muniu de uma G - 3 com os respectivos carregadores, desatando a disparar por aqueles corredores fora ... dizendo que fodia aquela "merda" toda ... ao mesmo tempo que o pessoal fugia a sete pés, gritando que ele era maluco.

         Foi remédio santo porque passado este acesso de loucura, poucos mais dias por lá ficou.

         Foi restituído à liberdade, ilibado de qualquer crime ou de acusação de traição à Pátria.

        Como era época das chuvas esta caía incessantemente, e nós com ela ou sem ela, saíamos quase todos os dias para as emboscadas, já sob o comando do alferes Oliva Samaritano que entretanto tinha vindo ao nosso encontro.

         Numa noite saímos debaixo de chuva torrencial para nos irmos emboscar talvez a 3 km de distância.

         Antes de chegarmos ao objectivo parou de chover e pôs‑se uma linda noite de luar, devia ser talvez meia‑noite.

         Chegámos e deitámo‑nos ao longo da berma, num autêntico charco de água e lama, no que outrora tinha sido uma estrada de terra batida, e ali ficámos silenciosamente à espera dos prováveis acontecimentos.

         E assim nos mantivemos mais ou menos durante trinta minutos ... até ouvirmos alguém que se aproximava imitando animais.

         Ao passo que se iam aproximando, nós distinguimos quatro vultos, que metiam as mãos na boca, ao mesmo tempo que se voltavam para trás e davam grunhidos e uivos, imitando certos animais.

         Imediatamente compreendemos, que eram os quatro guias, que vinham a abrir o caminho ao inimigo, para irem atacar o nosso aquartelamento.

         O alferes Samaritano logo começou a passar palavra, para que só abrisse-mos fogo, quando os primeiros deles chegassem ao fim dos nossos, ou seja quando estivessem todos debaixo da nossa mira, dentro da zona de morte.

         Mais uma vez os filhos da puta dos Milícias provaram que estavam mal treinados, porque mal os guias se aproximaram, eles abriram fogo precipitadamente, muito antes de tempo, denunciando a emboscada.

         Estragaram tudo os cabrões e ainda por cima nos deixaram em apuros. O inimigo imediatamente recuou,  em menos de um segundo montou a artilharia e de repente a noite de luar tornou‑se num verdadeiro Inferno, com canhoadas e morteiradas a rebentarem junto de nós.

         Tivemos de fugir à frente dos violentos rebentamentos, procurar sítios que nos dessem mais segurança, e efectuar depois um envolvimento.

         Durante aproximadamente uma hora travou‑se uma luta renhida e tenho a certeza que se durasse mais meia hora, ficávamos completamente sem munições.

         Felizmente que eles acabaram por recuar e nós não tivemos feridos a assinalar.

         Hoje passados tantos anos, ponho‑me a reflectir sobre a natureza dos inimigos contra quem desesperadamente lutámos. Penso que se eles fossem tão destemidos como nós, poucas ou nenhumas hipóteses tínhamos de lhes fazer frente.

         Eles tinham armamento muito superior ao nosso e ainda por cima conheciam a mata e a selva como a palma das mãos, enquanto que nós ao princípio tínhamos medo das cobras, dos lagartos e de toda a bicharada.

         Só com o tempo nos fomos habituando, tanto aos bichos como à selva, que diga‑se de passagem também chegámos a conhecer igualmente como as palmas das nossas mãos.

         Eles eram veteranos com quase dez anos de guerrilha e chefes treinados na China, em Cuba e na Rússia e só faziam asneiras do ponto de vista de técnicas de combate. Nós, ao fim de alguns meses já lhes dávamos "baile", não nos conseguindo apanhar, chegando ao ponto de sermos nós a desenvolver acções de guerrilha contra eles.

         Depois  da  independência  da  Guiné,  várias  vezes  ouvi  na televisão   ex-turras dizerem que tinham vencido os portugueses e até portugueses a dizer que a guerra na Guiné estava perdida ... não foi isso que eu vi enquanto estive lá.

         Talvez os políticos tenham perdido a Guiné, mas nós, soldados, não perdemos a guerra!