SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O INFORTÚNIO DO ALFERES MADUREIRA ‑ MALDITAS MINAS

 

        

 

á noite eu e o Alcino viemo‑nos encontrar com o Mário e fomos os três beber umas cervejas na cantina.

         Os ensaios ficaram para o dia seguinte, porque naquela noite já havia gente para ensaiar.

         A nós juntaram‑se mais dois camaradas que tinham estado comigo no Regimento de Cavalaria 7: o Vasco e o João.

         Começaram‑me a contar, que Bula e Aldeia Formosa, estavam constantemente debaixo de fogo e que muitos dos nossos conhecidos, que estiveram connosco na Ajuda, já tinham sido evacuados para a Metrópole, com ferimentos bastante graves, e que o alferes Madureira também teve fatalidade igual.

         Disseram que segundo a versão de quem lhes tinha contado, o pelotão tinha caído numa emboscada e que o alferes Madureira ao tentar fugir para se abrigar, caiu numa mina. Mas mesmo sem uma perna, continuou a disparar e a resistir heroicamente ao inimigo, incitando os seus homens a fazê‑los recuar.

         Senti uma profunda tristeza ao saber que este homem bom e humano, tinha sido drasticamente marcado pela guerra. Que para ele acabou da pior maneira, assinalando‑o fisicamente para o resto da vida. Lutando por uma causa injusta, numa guerra de guerrilhas, de onde nunca saem nem vencidos nem vencedores.

         Num dia do ano de 1976 fui convidado por um amigo ex-Fuzileiro e actual Chefe da P. S. P., o  Xanandôa, para almoçar num restaurante da Amadora.

         Sentámo-nos, escolhemos o que queríamos almoçar e animadamente conversando, começámos a comer.

         Reparei que na mesa em frente estavam comendo alegremente seis pessoas, (três homens e três mulheres).

         Curiosamente comecei a fixar o olhar num dos homens e nisto disse para o Xanandôa:

         - Conheço aquele senhor de cabelos castanhos e olhos verdes. E até sei que infelizmente não tem uma perna. Passando a contar-lhe o que tinha acontecido.

         Entretanto o tal senhor levantou-se e passou junto há nossa mesa. Seguimo-lo com o olhar e notámos que não coxeava ... fiquei na dúvida e pensei:

         - Se calhar não é ele; mas olha que nunca vi pessoa mais parecida.

         Voltou a passar e eu sem hesitar abordei-o com estas palavras:

         - O senhor desculpe, chama-se Madureira? Ao que ele fixando-me, respondeu que sim.

         - Então e não se lembra de mim? Depois de um pequeno esforço ele logo me reconheceu.

         Cumprimentámo-nos,  abraçámo-nos e depois de recordarmos algumas passagens da nossa vida, militar, de cá e da Guiné, eu disse-lhe:

         - O meu alferes infelizmente veio assinalado pelas malditas minas. E ele batendo na prótese, disse:

         - Tiraram-me lá uma perna ... mas a vida não ma conseguiram tirar.

         O Xanadôa seguia atentamente tudo o que íamos relatando, sem se manifestar com qualquer palavra ... olhei para ele e notei que as lágrimas lhe deslizavam suavemente pelo rosto.

         Depois disse-me que era engenheiro numa fábrica da Amadora e entregou-me um cartão dessa mesma empresa, onde se destacava o nome dele.

         Como os colegas o reclamavam, acabámos por nos despedir com um grande abraço e desejos de muitas felicidades ... e até à presente data, infelizmente, nunca mais nos vimos.

 

         Achando que a guerra era uma guerra desumana e sem honra, na sua grande maioria, a tropa portuguesa não colocava minas.

         No caso concreto da área do nosso Batalhão - Tite, Jabadá, Enxudé, Fulacunda e Nova Sintra -, não havia quaisquer minas colocadas por nós, embora tivesse havido muitos feridos por minas colocadas pelo P. A. I. G. C.

         Já no fim da comissão soube por um dos desertores que estavam a viver connosco que tinham recentemente recebido ordem para retirar as minas que tinham colocado à volta de Jabadá. Peso de consciência ou verificação de que nós não íamos pelo mesmo caminho e nunca pelos trilhos onde poderia haver minas?