SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

O ROQUE NÃO GANHOU PARA O SUSTO

 

 

 

m dia pelas 10 horas da manhã, encontrava-me eu sentado na parte da frente da tabanca do Cigano, a conversar e a vê-lo fazer artesanato em pau-rosa e pau-preto, com a catana e as navalhas bem afiadas.

         Nisto, passa o Roque que pára e me diz:

         - Devias era ter nascido preto. O melhor é mascarrares-te para ficares igual a eles, porque já és igual em tudo menos na cor.

         Levantei-me e disse-lhe:

         - Deves estar a confundir o género humano com o Manuel Germano.

         O gajo não gostou da frase e veio para mim desenfreado, sem me dar tempo a que eu reflectisse sobre as suas intenções.

         Traiçoeiramente meteu-me as mãos nos ombros e tentou derrubar-me.  Depois de nos embrenharmos na luta com socos e pontapés, o gajo acabou por levar a melhor e eu acabei por varrer o chão.

         Enrolámo-nos na poeira, até que ele ficou na melhor posição a tentar socar-me na face, enquanto eu lutava com todas as minhas forças, defendo-me e retribuindo os socos que ele me dava, evitando a todo o custo que ele me tocasse na cara.

         O pobre do Cigano dava pulos com a catana no ar e gritava em Criôlo:

         - O Scherno! O Scherno!

         Dando-me a entender que dizia: venham socorrer o Scherno, porque o outro tropa tem mais físico e acaba com ele.

         Em menos de um segundo, surgem negros de todos os lados, com as catanas no ar, prontos a darem cabo do Roque. Ele vendo-se rodeado por um regimento de negros com as catanas apontadas ao pescoço e prontos a decapitar-lhe a cabeça, tremia que nem varas verdes. Tentou levantar-se mas eles não deixaram. Pôs-se de joelhos e implorou-me de mãos erguidas para que os acalmasse e o deixassem ir embora.

         Ajudei a levantá-lo e quando ele se preparava para fugir, dei-lhe um valente pontapé no traseiro tipo coice de mula, que ele foi de trombas ao chão e assim sucessivamente de cada vez que se levantava, até que conseguiu fugir.

         Ganhou juízo, porque a partir desse momento, nunca mais se meteu comigo e nem se aliava aos outros, para me fazerem a vida negra. E se não fossem os antecedentes, até tinha arranjado ali um amigo. Só que eu nunca mais quis nada com ele.

         O Roque tinha a mania que era Mister Músculos Universo e quando caminhava parecia um pavão, sempre de peito inchado, fazendo músculos, armado em Tarzan. Mas desta vez, não teve outro remédio se não perder a cagança e meter os músculos no cú.

         O Cigano era um negro bastante inteligente e habilidoso, que construía lindos bonecos em madeira e outros artesanatos.

         Ele, o Pau-Preto e  o Champion foram os meus maiores amigos africanos, sem menosprezar outros tantos, que infelizmente por lá deixei.

         O Cigano adorava a um Deus, que se dava pelo nome de Iron e pelo que eu entendia, esse Deus também devia estar relacionado com o ferro.

         Ele e os da sua religião, rezavam dentro de umas palhotas redondas e muito pequenas, onde só cabiam de joelhos.

         Todo o material de ferro que encontravam, inclusivamente até as peças dos carros do quartel, eram penduradas por eles dentro dessa minúscula palhota.

         De vez em quando sacrificavam uma galinha cortando-lhe a cabeça e as patas, depois borrifavam os ferros com o sangue e ofereciam-me a galinha. Mas antes desviava-me à espera que começassem os rituais. E o Cigano passado pouco tempo estendia-me a galinha sem uma palavra, ao que eu agradecia fazendo uma vénia, ou baixando simplesmente a cabeça.

         Soube posteriormente que eles acreditavam na reincarnação. Quando uma pessoa da família morria, o seu espírito ia para uma árvore ou para um daqueles ferros, onde ficava até que uma mulher da família ficasse grávida.

         De vez em quando, os vivos tinham que lhes fazer ofertas sacrificando galinhas ou cabras, para eles se manterem naqueles invólucros. Nessas alturas podiam pedir-lhes concelhos. A resposta era dada pela forma como se derramava o sangue dos animais sacrificados.

         Quando uma mulher engravidava, era efectuada uma cerimónia semelhante e um dos espíritos passaria para a barriga dela.

         O filho ou filha que morresse era o espírito do antepassado.