SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

CANTOS E DESENCANTOS

 

        

 

stávamos em pleno Verão do mês de Março de 1970. O capitão Duro Capucho mandou matar uma vaca e organizar um grande festim, com bolos e vinho à descrição, para festejar não sei o quê mas penso que o nosso regresso, depois de quatro meses de ausência voltando sãos e escorreitos, sem feridos e sem baixas.

         A festa decorreu com grande alegria; fizeram-se discursos alusivos aos nossos factos e feitos, ao longo de 14 meses de Campanha em terras da Guiné.

         No fim fui solicitado para cantar, o que fiz com vontade e alegria.

         A partir desse dia comecei a participar em festas de outros destacamentos, principalmente aqueles que iam receber a visita do comandante chefe Brigadeiro António de Spínola, que sempre se fazia acompanhar por uma "Fanfarra" composta  exclusivamente por negros Africanos, e que era igual ou parecida com as Bandas que tocavam nos coretos dos jardins, na época dos Santos Populares.

         Quando me tinha de deslocar para alguma dessas festas, partia sempre com quatro ou cinco dias de antecedência, para ensaiar com um conjunto que pertencia ao Quartel General, e que não faziam outra coisa se não tocar.

         Trocaram as armas pelos instrumentos musicais e eu se tivesse sido um pouco mais esperto, talvez conseguisse o mesmo que eles ... mas para que isso tivesse acontecido, teria de dar a volta ao capitão Capucho, o que na altura era muito difícil.

         Com todas estas andanças comecei a ser alvo de raivas, invejas e ciúmes, por parte de alguns camaradas, o que não era de estranhar, porque infelizmente desde muito novo me fui apercebendo que este mundo é uma farsa, e que por isso mesmo está constituído pelo menos com 80% de pessoas desta classe, que não vivem nem deixam viver.

         Mas enfim, tudo isto faz parte do ser humano e do obscurantismo do mundo que nos rodeia ... e para se dar valor ao doce, tem de se provar o amargo.

         Eu limitava-me a receber ordens, para fazer aquilo de que mais gostava, e estas ordens eram sempre bem vindas.

         Eles lutavam com menos um elemento que não era substituído, tanto nas emboscadas, como no reforço. Durante a noite tinham de dividir o tempo por menos um ou seja seis em vez de sete, enquanto eu me ausentava para longe ... na maior das alegrias.

         Não há dúvida que essa situação os encheu de raiva e começaram por esse motivo a fazerem-me a vida negra.

         Os dias iam passando com os habituais ataques ao aquartelamento, as saídas para as emboscadas, os banhos no rio, horas passadas com a Huana e a Danka, ou no meio das tabancas com as crianças, os velhos, os novos, etc,

         Entretanto estávamos no mesmo abrigo sete homens: eu, o Bartéló, o Púscas, o Roque, o Mau-Olho, o Marôco, e o Banhas. Todos nos entendíamos pouco mais ou menos bem, embora sempre tentássemos evitar qualquer discórdia ou desavença mais desagradável.  Mas infelizmente tudo iria ser alterado, com um novo personagem.

         O Banhas foi destacado para o abrigo onde se encontrava o Fiúza, vindo para o substituir o Albernôa ... que não era flor que se cheirasse.

         Fiquei triste com a troca e por ter ficado com um amigo mais distante, porque na generalidade nós até éramos bons amigos ! ...

Restava-me agora o bom relacionamento de amizade com o Bartéló, porque os restantes não eram grandes espingardas, e disso tive eu a prova passados alguns tempos. Só que nunca me tinha passado pela cabeça, que iria ficar completamente entregue aos bichos.

         Dos que se encontravam naquele abrigo só quatro pertenciam ao 4.º pelotão: eu, o Bartéló, o Mau-Olho e o Púscas. Os restantes pertenciam ao 3.º pelotão. Portanto, quando saíamos para as emboscadas ficavam eles de guarda ao abrigo e vice-versa.

         Entretanto o Bartéló desarranchou-se e passou a comer na tabanca de uns amigos nativos, poupando dessa forma 36$00 por dia, dinheiro esse que recebia no vencimento mensal.

         O Albernôa não sabia ler nem escrever e eu de boa vontade comecei-lhe a dedicar algumas horas dos meus tempos livres, lendo-lhe e escrevendo-lhe as cartas para a família.

         Mais tarde arranjei paciência e comecei-lhe a ensinar o bê-á-bá. Mas acabei por desistir porque o gajo não assimilava, devido a tanta estupidez que pairava naquela cabeça, acho até que no lugar dos miolos e da massa encefálica só tinha merda.

         O Albernôa nasceu com uma grave deficiência cerebral, ou seja nasceu com o intestino grosso ligado ao cérebro, chegando a um ponto que a merda era tanta que tinha de usar chapéu.

         O Albernôa até me fazia lembrar um concurso que houve na China para ver quem é que cagava mais e onde participaram três concorrentes estrangeiros: Um português, um Alemão e um Inglês.

         Convidaram o Bocage para nos representar, ao que ele acedeu de bom grado.

         Lá partiu para a China acompanhado da sua Maria, levando na bagagem, um grande tacho, uma saca de 50 kg. de feijão e uma grande rolha, dessas que antigamente metiam nas bilhas das águas de Caneças.

         Chegaram à China com uma semana de antecedência. Depois de lhes destinarem os aposentos, a Maria imediatamente pós o tacho ao lume, e começou a cozinhar o feijão, o Bocage por sua vez enfiou a rolha no cú, e até ao dia do concurso foi-se atascando de feijão até quase rebentar.

         Passados dias lia-se na primeira página de todos os jornais! ...

Há três dias que chove merda na China!... Uma rolha mata um toiro a 300 km à hora.

 

         Por agora vou deixar o Albernôa, mais tarde voltarei a falar dele.