SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

A  MATACANHA

 

        

 

istribuíram-nos pelos abrigos. Disseram-me onde é que eu ficava e qual era a minha cama. Arrumei os meus materiais e dirigi-me à enfermaria para que me rebentassem o tal ‘’caroço’’. O enfermeiro, depois de analisar, mandou-me pôr o pé em cima de um banco e pegou numa agulha ... e quando me vai a picar surge o tal nativo que grita :

         - Não faz isso!... Não faz isso!... Se faz isso muri ... ser matacanha !...

         O enfermeiro ficou meio atordoado sem saber o que fazer, enquanto o nativo me agarrou pelo braço e puxou cá para fora.

         Mandou-me sentar em cima do tronco de uma árvore que estava caída e procurou uma espinha de peixe no chão. Depois de a encontrar começou muito cuidadosamente, a esfarelar a pele em volta do caroço e em menos de 5 minutos, tirou um casulo que mais parecia dos bichos da seda ... extraiu-o com bastante sabedoria e eficácia, sem sequer provocar uma pinta de sangue.

         Depois de me mostrar o casulo, procurou duas pedras e esmagou-o explicando-me que se fizesse sangue e a matacanha se infiltrasse no mesmo eu acabaria por morrer.

         Porra! Pensei eu. Todos nós sabemos que temos de morrer de qualquer coisa, mas morrer de matacanha acho que era lixado, embora saiba que a vida é uma merda e que não passa de umas férias que a morte nos concede, que para uns são mais longas, enquanto que para outros são infalivelmente mais curtas.

         Mas é sempre bom viver, de preferência com saúde, dinheiro e alegria. Estas três coisas são fundamentais para quem veio a este mundo ... para não vegetar, nem ser açambarcado pelos galifões que só pensam em ter este mundo e o outro só para eles. Mas como o bem está sempre acompanhado do mal, não temos outra alternativa senão lutar contra o mundo. Porque o mundo luta contra nós e infelizmente, na prática, é assim que vivemos.

         Mas voltando à matacanha. O preto disse que eu podia morrer, mas na altura não liguei muito, só mais tarde é que fui averiguar o perigo a que estava exposto, reconhecendo pelo facto que ele me salvou a saúde.

         Fiquei com um buraco no peito do pé que cabia lá sem exagero, a cabeça do dedo mindinho e só passado muito tempo voltou ao normal.

         Estúpida ignorância de quem nos governava e mandava como carne para canhão. Nem ao menos se dignavam em formar médicos e enfermeiros que obtivessem conhecimentos de medicina tropical. Pelo menos deviam ter a competência de nos informarem dos perigos dos micróbios e vírus que nos podiam afectar e provocar doenças em África.

         Coisa que nunca fizeram. Simplesmente nos mandaram vacinar contra a varíola e febre amarela.

         Os médicos que nos assistiam somente tinham conhecimentos para curar o paludismo e mal. Deviam ter evoluído um pouco mais, sobre as doenças africanas que mais nos afectavam, uma vez que era para lá que iam exercer.

         A falta de conhecimentos e de informação foi fatal para muitos. E não era a nós soldados sem cultura e alguns até bastante mal formados, que competia estudar e averiguar as doenças tropicais. Mas enfim, o sistema estava montado assim e em África a sorte de um homem era escapar ... das doenças e das balas.

         A matacanha era um bicho só visto ao microscópio, proveniente da flor dos mangueiros e que atacava mais propriamente os pés e os dedos, infiltrando-se através da pele. Aí faziam ninho e se reproduzirem aos milhares. A única maneira de nos precavermos, era andarmos sempre calçados com as botas de lona ou de cabedal e nunca de chinelos.

         Por mais incrível que pareça, em oito meses de Guiné ainda não tinha aparecido um caso destes, que era desconhecido de toda a gente. Só depois de eu divulgar e alertar a maioria do pessoal, começaram a aparecer mais casos, e foi a partir desse momento que a maioria deixou de andar de chinelos.