SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

AS  TATUAGENS  DO  CUXIXO  E  O  DESGOSTO  DO  FIÚZA

 

        

 

niciámos o mês de Agosto e as chuvas começaram a ser menos intensas; recomeçando por esse motivo as saídas para as emboscadas e os ataques ao aquartelamento a serem mais frequentes.

         Cinco meses já se tinham passado, eu ainda continuava vivo e isso é que era importante. A vida ia decorrendo dentro da normalidade, sem grandes acontecimentos a assinalar.

         Começámos a construir uma prancha numa embocadura do rio e voltámos aos nossos mergulhos sem medo dos jacarés ou do que quer que fosse.

         A maior parte do meu tempo era passado na tabanca com a Huana e a Danka, fazendo tatuagens ao pessoal que para isso me solicitava ou então tomando banho no rio.

         Aos poucos fui-me tornando famoso como tatuador, arte que eu praticava com duas agulhas e tinta da China: os desenhos mais pretendidos eram as palmeiras e os corações, os dizeres eram quase sempre os mesmos - Guiné por ti lutei ... Guiné sangue suor e lágrimas ... Amor de Pais ... Amor de Mãe ... Amor de Esposa ... Amor desta, amor daquela etc ... etc ...

         Entretanto fiz uma tatuagem ao Cuxixo no braço esquerdo, mais propriamente um coração com os seguintes dizeres: - ‘’Amor de Esposa -- Maria Teresa Vaz’’. Passados poucos dias o Cuxixo começa a receber notícias de familiares e amigos, informando-o de que a mulher se juntou  a  um "proxeneta",  que  a  pôs  atacar  na  prostituição.

         O Cuxixo era dos poucos que até hoje conheci que sabia sofrer calado. Na altura somente com 21 anos, era um grande homem: alto, forte, destemido, inteligente, amigo do  seu semelhante, herói e guerrilheiro. Em poucas palavras se definia ... era simples, pacato e humilde. Não contrariava ninguém, mas podiam-no contrariar, que ele pouco ou nada se importava.

         Conheci-o na escola em Odivelas na 3.ª e 4.ª classes e sabia que o pai e a mãe fabricavam rebuçados, chocolates e chupa-chupas, que vendiam nas escolas e nas lojas em Odivelas...  vai daí a alcunha de Cuxixo ... em que o Púscas sabendo da história o baptizou e com motivo, porque nos anos 50/60 dava-se o nome de cuxixos ao que hoje chamamos  chupa-chupas, com a forma de apito. Daí ouvirmos da nossa saudosa Beatriz Costa:

         - Olha o Cuxixo ... olha o cuxixo da menina, que se farta de apitar ... ri pi pi ... pi pi pi pi ... e nunca mais desafina.

         O Cuxixo por muito pacato e humilde que fosse, acabou por se sentir tocado no seu orgulho de homem que era ... e não querendo a "coisa" que eu lhe tinha escrito no braço para toda a vida, arranjou ácido sulfúrico e pôs-se a tentar apagar o nome da ex-mulher ... e durante dias foi tentando, só que quando quis parar já era tarde, porque o ácido lhe comeu a tatuagem e a carne quase até ao osso.

         O Cuxixo parecia insensível à dor e aquilo para ele era mais ferimento menos ferimento, valendo-lhe por isso a boa carne que o constituía. Ao fim de oito dias estava são. Vi-o diversas vezes com graves ferimentos e passados alguns dias estava sarado.

         Mas desta vez levou muito tempo e o capitão Capucho depois de saber que fui eu o autor da tatuagem, chamou-me e disse-me que se ele não se recuperasse o responsável era eu e que como tal iria responder por isso perante um Auto que ele próprio me iria instaurar.

         Felizmente e graças  a Deus acabou por sarar, porque caso contrário íamos perder um dos melhores elementos do 4.º pelotão. O Cuxixo era o mais afoito e o mais destemido de todos nós e depois do sucedido com a mulher redobrou de valentia! ...

         Oportunamente voltarei a falar do Cuxixo, porque ele vai-me acompanhar quase até ao fim da comissão.

         Completámos oito meses e tal como eu já tinha previsto ainda em Estremoz, o Fiúza começou  receber cartas de familiares e amigos informando-o de que andava a ser ‘’corneado’’ ... o choque foi grande e ele, com o tempo, começou a ficar psicológicamente bastante afectado.

         Como seu amigo tentava consolá-lo com palavras de compreensão e ao mesmo tempo convencê-lo que ela não era a única mulher existente na terra :

         - Deixa lá pá, - dizia-lhe eu, - quando regressares à Metrópole vais ter as mulheres que quiseres. Tenta esquecê-la porque ela não te merece. E ele respondia:

         - Eu não consigo esquecê-la. Ela para mim é a única mulher no mundo e eu nunca a vou tirar do pensamento. Só de pensar que a perdi para sempre quase me leva à loucura!

         - Pode ser que não pá. - Respondi eu.

         - Nesse caso quando regressares à Metrópole, perdoas-lhe e esqueces que ela um dia te "corneou" Está mais que provado que aquilo depois de lavado e enxuto fica como novo. Só que talvez um bocadinho mais apertado para os lados devido ao uso mas isso tu também não te vais importar, e para mais segundo reza o ditado "um homem sem cornos é como um jardim sem flores" ! Ele respondia: 

         - Tu falas assim porque até agora ainda não se consta nada a respeito da tua, mas se algum dia se constar eu quero ver como é que tu vais reagir!

         - Porra pá! Afastado seja o maligno ... Faço votos para que não, mas isto é como tudo "quem anda à chuva molha-se" e depois há uma grande diferença: é que a minha embora  seja bonita e jeitosa, não é modelo como a tua, e para mais tem lá duas criancinhas para se entreter a criar e educar. Talvez por esse motivo seja mais difícil eu ser "cabrão", mas no entanto todos nós temos telhados de vidro, e segundo reza a história "quem tem telhado de vidro pode acordar com um corno partido".

         Os dias foram passando e eu cada vez via o Fiúza mais triste e afectado. Já não era o mesmo de outrora e vê-lo assim também me dava uma profunda tristeza. Pouco ou nada falava, passava a maior parte do tempo a matar os desgraçados dos lagartos que habitavam nos mangueiros com uma arma de ‘’porção de ar’’ que tinha trazido da Metrópole. Quando se fartava de chacinar os lagartos, ia para umas árvores onde uns pássaros amarelos iam construindo os ninhos e fazia-lhes uma razia.

         Os pássaros ainda nós comíamos, os lagartos mandava os miúdos abrir uma cova para os enterrar.

         Um dia pela tarde estava eu a brincar com o ‘’Nilo’’ quando vieram distribuir o correio. O Fiúza abre a correspondência dele e começa a ler. Olhei-o e notei que estava a ficar bastante transtornado. De repente, exaltado diz:

         - ‘’Grande Puta’’ !...

         Corre para dentro do abrigo e eu de pronto o segui.

         Agarrou numa pistola "Vaultier" que estava em cima da mesa e que pertencia ao Cuxixo apontou-a à cabeça pronto a disparar. Corri direito a ele e apliquei-lhe uma valente cabeçada no peito que o fez ir de encontro a uma cama fazendo-o cambalear e de seguida com grandes dificuldades, lá lhe consegui tirar a arma.

         Foi difícil conseguir fazê-lo voltar à realidade, mas com muita paciência e palavras amigas lá o fui acalmando, fazendo-o prometer-me que nunca mais voltava a tentar o suicídio.