SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

A  CONSULTA  EXTERNA

 

        

 

m Jabadá não tínhamos médico. Disponhamos só e unicamente de um furriel e três cabos enfermeiros ... os médicos encontravam-se em Tite na sede do sector.

         De três em três meses pouco mais ou menos, vinha um médico consultar quem se encontrava doente. Um dia, veio o capitão médico dr. Robalo, homem alto e corpulento, que segundo diziam não dava baixas a ninguém.

         Inscrevi-me para a consulta e quando chegou a minha vez lá fui eu ...

         - Então do que é que se queixa?

         Perguntou ele.

         - Senhor doutor, eu estava a fazer uma casota para o meu macaco, em cima de uma mangueira, quando escorreguei e caí, batendo com o ombro direito no chão.

         - Mostre-me cá isso, - mandou ele, dizendo logo de seguida:

         - Você arranjou práqui uma bonita brincadeira. Começou a escrever e voltando-se para o capitão Capucho que se encontrava presente, disse-lhe:

         - Este homem vai para Bissau urgentemente, para tirar radiografias e fazer tratamento ao ombro, no Hospital Militar! ... Depois de ouvir isto fiquei parvo de contente. Afinal o homem não era tão mau como o pintavam.

         Dirigi-me ao sargento Taínha, para me tratar da guia de marcha e da papelada para entregar no hospital.

         No dia seguinte logo pela manhã embarquei no Zebro com o Salsicha, o novo barqueiro substituto do Cassiano.

         Chegámos a Bissau por volta das 10 horas, despedi-me do Salsicha e logo apanhei uma boleia num Unimog que pertencia aos Comandos.

         Apresentei-me no hospital, onde depois de me tirarem quatro radiografias, me massajaram com uma pomada e me ligaram o ombro. 

         O problema, felizmente, não era muito grave. Estava só dorido. Mandaram-me voltar no dia seguinte pelas 9 horas, para continuar o tratamento.

         Voltei para Bissau e fui procurar uma tasca onde pudesse almoçar. Quando me encontrava a comer, vejo entrar o Manaças, que era também uma velha amizade de Odivelas.

         Sentou-se na minha mesa para almoçar, ficando admirado por me ver ali ...  Depois de muito conversarmos e de ficarmos a par das nossas actuais vidas, disse-me que era o responsável pela pintura do hospital, e que se eu quisesse podia ficar lá com ele todo o tempo que permanecesse em Bissau.

         - Então mas como? Respondi eu.

         - Se tenho uma guia para me apresentar no Quartel de Adidos em Brá, que forçosamente me obriga a ficar agregado.

         E ele disse :

         - Hó pá, vê-se mesmo que não percebes nada disto ! . . Vais-te lá apresentar, dizes que tens família em Bissau, e pedes para te concederem estes dias para passares com a família. Vais ver que eles te autorizam. Depois vais ter comigo ao hospital, que eu trato do teu alojamento.

         Assim fiz, só que um ‘’sargento de má pinta’’ disse-me que tinha de ir periodicamente ver a escala de serviços, que eu tinha de alinhar uma ou duas vezes por semana de sentinela ao quartel e que só nessas condições assinava a autorização. Eu concordei e agradeci.

         Vim para baixo e fui procurar o Manaças, que nessa altura se encontrava no armazém das tintas do hospital.

         Então, perguntou ele:

         - Safaste-te ou quê?

         - Safei sim.

         - Respondi eu.

         - Pronto, nesse caso vou-te arranjar um colchão e lençóis ...  Desarredam-se estes latões de tinta, mete-se o colchão no chão e dormes aqui paralelo comigo.

         Ele dormia num divã, de abrir e fechar, e eu passei a dormir com o colchão no chão, paralelo a ele. O divã dele estava sempre montado, o meu colchão é que tinha de ser arrumado logo pela manhã.

         O Manaças foi impecável e bom amigo! Como ele raramente comia no refeitório, porque passava a maior parte do seu tempo na cidade, foi comigo ao refeitório e apresentou-me ao cozinheiro, dizendo que eu era seu primo e como tal não pertencia ao hospital, mas pedia que ele fechasse os olhos e me tratasse bem, dando-me de comer e beber.

         Mais tarde verifiquei o quanto ele era respeitado e considerado pela maior parte das pessoas, tanto pelos pretos, como pelos brancos.

         Logo na primeira refeição que fiz no refeitório, apareceu o Oficial de Dia e disse-me:

         - Você não pertence aqui ... O que é que está aqui a fazer? Qual é a sua unidade?

         - Não sei, pergunte ao cozinheiro. 

         Chamou-o e o cozinheiro respondeu:

         - É primo do Manaças.

         Depois de ouvir o que o cozinheiro respondeu, olhou para mim e com um sorriso de simpatia disse:

         - Há pronto, sendo assim está bem.

         No dia seguinte continuei com os tratamentos lá no hospital; com massagens e fisioterapia.

         Entretanto perguntei ao enfermeiro quanto tempo é que iria durar o tratamento. Disse-me que cerca de um mês, pouco mais ou menos.

         Visto ser assim era uma maravilha. Um mês livre da guerra, das emboscadas e do reforço. Bem me podia ir preparando para desfrutar, estes dias de férias tropicais.

         Escrevi à minha mulher a contar o sucedido, dizendo que me passasse a escrever para o endereço do Manaças, ao mesmo tempo que lhe pedi que me enviasse dinheiro em valor declarado.

         O ombro já mal me doía e eu passei a fazer uma vida perfeitamente normal.  Logo pela manhã, tomava o pequeno almoço e de seguida ia ao tratamento. Depois ia até Brá ver a escala de serviços e voltava ao hospital para almoçar. 

         Da parte da tarde, ia para a cidade e por lá ficava conversando com pessoal conhecido que por ali andava, alguns até na mesma situação de consulta externa. Entre eles havia um que se queixava do estômago e quando tinha de tirar radiografias, engolia uma azeitona em jejum. E devido a esta esperteza, aparecia sempre uma mancha nas radiografias. Os médicos ficavam baralhados e ele continuava na maior, pelo menos enquanto não fosse descoberto.

         Por ali ficávamos até altas horas da noite, a maior parte das vezes jantava por lá e muito raramente vinha ao refeitório do hospital.