SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

OPERAÇÃO  EM  TITE

 

        

 

um sábado de manhã, nós do 4º Pelotão, recebemos ordens para nos prepararmos que íamos para Tite.

         A seguir ao almoço embarcámos em zebros da Armada.

         Levávamos um elemento a menos, visto a rendição individual do Augusto ainda não ter chegado.

         Fomos carregados com todo o equipamento necessário e armados até aos dentes. Deixaram-nos no Enxudé e fizemos o resto do percurso a pé, por uma estrada de terra batida que estava minuciosamente a ser vigiada pelas nossas tropas com pequenos carros de combate e que ligava a Tite por uma distância de seis ou sete km.

         O Enxudé era o posto mais pequeno de todo o sector, defendido por 30 e poucos homens, incluindo os seis que estavam encarregues da vigilância da estrada.

         Chegados a Tite indicaram-nos uma caserna com camas para nos alojarmos. Imediatamente começámos aliviar as costas do peso do material, que já há algumas horas vínhamos carregando.

         Entretanto fui com o Fiúza e outros camaradas à cantina refrescar a garganta com umas cervejas, quando de repente vejo o Mário! Um grande e velho amigo dos tempos de infância e da escola primária em Odivelas. Revivemos os nossos tempos de meninice, falámos da família, mais dos nossos irmãos e bebemos mais umas cervejas para comemorar.

         O Mário entretanto disse que sabia porque é que nós estávamos ali... que íamos fazer uma operação de quatro dias em conjunto com alguns pelotões de lá. Disse que ia ser muito duro e alertou-me para a falta de água devido à seca e a estarmos quase no final do Verão. Insistiu em me emprestar um cantil suplente, mas devido ao peso que tinha de carregar, tal como rações de combate, arma munições, cartucheiras, granadas e um cantil com água ... estupidamente rejeitei e não levei muitas horas para me arrepender.

         O Mário estava bem informado e as informações que nos transmitiu foram preciosas, visto nós desconhecermos totalmente o que tínhamos ido para ali fazer.

         No dia seguinte domingo pelas 3 horas da madrugada, iniciámos a grande caminhada, devíamos ser perto de 100 homens incluindo o 2.' Comandante: major Carlos Pereira, homem valente e sem medo, de grandes potencialidades, que nos dava energia e confiança.

         Caminhámos durante horas até o sol romper, sem nenhum acontecimento a assinalar.  Com o nascer do sol o calor começou a escaldar e a sede a apertar; de vez em quando lá ia mais um golo de água, mas o pior é que eu só tinha um litro, enquanto o alferes Samaritano e os furriéis levavam dois cantis o que representava dois litros de água, porque iam menos carregados.

         Por volta das 11 horas, conforme íamos caminhando por uma parte de mato mais descampado, mas que dava para nos ocultarmos de qualquer perigo eminente, ouvimos vozes e escondemo-nos silenciosamente ... As vozes foram-se aproximando, até que se nos depararam nove mulheres e três homens com canastras de verga cheias de peixe fresco à cabeça, que era destinado à alimentação do inimigo principalmente dos mercenários cubanos que proliferavam por quase toda a zona da Guiné como dominantes de todo o povo que os acompanhava principalmente no que tocava a sexo. Só queriam bajudas adolescentes e de preferência virgens, para ‘’rebentar o cabaço’’, (tirar os três vinténs).

         Como conhecedores e experientes que eram da guerra, devido à sua profissão de mercenários, acabavam por ser os nossos piores inimigos.

         Prosseguimos depois de enterrarmos o peixe, antes que começasse a cheirar mal, e juntamente com os doze prisioneiros, continuámos a caminhar só parando para comer e descansar já pelo entardecer.  A ração de combate era composta por latas de carne de vaca, conservas de bacalhau, salgadas e com bastante picante, bisnagas de doces, compotas e pouco mais.  O pior é que toda esta alimentação nos provocava uma sede danada e como a água escasseava optámos por não comer.  Porque era preferível uma só dor, que andar a morrer à sede.

         Continuámos a caminhar, durante mais algumas horas, praticamente até ao pôr do sol, altura em que o major Carlos Pereira deu ordem para pararmos e disse que iríamos passar ali a noite.

         Cansados e exaustos como estávamos, cada qual livrou-se do peso que carregava e de imediato nos estendemos pelo chão.

         Já felizes e contentes pelo descanso que nos foi concedido, começámos a ouvir assobios de cobra, levantámo-nos e fomos procurando no cimo da árvore até que a descobrimos ! ... Era linda, com diversas cores e estava enrolada a um tronco com a cabeça levantada a olhar para nós... aparentemente até nos pareceu simpática e inofensiva, só que ás vezes as aparências enganam.

         Alertámos o alferes Samaritano para a situação, ele por sua vez falou ao major dizendo que os seus homens não queriam dormir ali com receio de serem mordidos pela cobra.

         O major foi analisar o réptil e disse:

         - Podem dormir aqui descansados; se não lhe fizeram mal, ela não os ataca  e até é tão bonita que eu aposto que é inofensiva. 

         Escureceu completamente. Uns adormeceram, enquanto outros ficaram de sentinela, meio deitados meio sentados, com a arma no colo.  A cobra desapareceu deixando no seu lugar os malditos mosquitos e as vampiras das melgas que não nos deixavam sossegar e não desistiam enquanto não tentassem sugar-nos o sangue todo.

         Prosseguimos ainda de madrugada.  Passadas poucas horas o sol começou a queimar  e a minha reserva de água tinha chegado ao fim, assim como a dos demais, excepto os oficias que ainda mantinham o cantil suplente.

         Como tínhamos levado comprimidos para a desidratação e que segundo as indicações da literatura também combatiam a sede, não hesitámos e começámos a tomar um atrás do outro, mas sem resultado ... ainda era pior do que as rações de combate - a sede dominava-nos todo o organismo e quase nos consumia e desidratava. 

         Entretanto encontrámos um poço talvez com um metro e meio de profundidade que no fundo só tinha lama, como não havia outra alternativa e em tempo de guerra não se limpam armas, começámos a tirar a lama com cuidado e a chupá-la como se fosse a maior riqueza do mundo. Na realidade nós naquela altura, dávamos tudo por um golo de água.

         Sedentos e quase desidratados, deparámos com um pomar de laranjeiras selvagens.

         Era sorte a mais e até difícil de acreditar, ver no meio da selva laranjas bonitas e sumarentas, só que amargas como fel ... o que para nós pouca importância tinha, doces ou amargas o que nos interessava era o sumo que sugávamos até ao extremo dos limites, na esperança de nos aliviar a terrível sede.

         O inimigo por sistema de táctica maquiavélica e assassina, mantinha as laranjeiras intocáveis e as laranjas desejáveis, para qualquer incauto e desidratado militar que por acaso caísse na tentação de tocar no fruto desejado.

         Antes de nos aproximarmos, tomámos a precaução e o cuidado de verificarmos se estavam armadilhadas, e só depois é que fomos encher os bolsos à vontade, e quase de certeza sem sobressaltos, caso contrário tínhamos mandado as laranjeiras todas pelo ar à força de granadas de mão.

         O inimigo por sistema armadilhava as laranjeiras e outras árvores de fruto e nós para nos vingarmos usávamos de outro estratagema não menos maquiavélico.

         Por exemplo tirávamos a tampa de uma lata de coca-cola, depois com muito cuidado tirávamos a cavilha de uma granada de mão ‘’ofensiva’’ que colocávamos dentro da lata, onde entrava justa e apertada, não dando hipótese de rebentar, uma vez que o manipulo se mantinha imobilizado. Depois colocava-se no chão com a tampa para cima, tentando dar a nítida impressão, que tinha sido perdida por algum de nós e que se mantinha ainda intacta. Se por acaso alguém a pegasse, nem tempo tinha para ficar surpreendido, porque ficaria apenas com a lata  vazia na mão, uma vez que a granada devido ao peso acabaria por ficar no chão e em 4 segundos rebentava ... levando assim o incauto lambão a entregar a alma ao criador.

         Chupávamos as laranjas que mais pareciam veneno, com um resultado bastante negativo, porque passados alguns minutos a sede quadruplicava.

         Caso idêntico aconteceu com os cajueiros. Chupávamos o fruto e deitávamos a castanha fora, o fruto era suculento e com bastante sumo, mas que mais parecia veneno extraído de carvão, com a agravante de nos provocar tosse de cão. 

         Passados alguns minutos parecíamos um bando de macacos babuínos ladrando que metiam respeito quando ladravam no silêncio da selva.

         Ainda estávamos só no segundo dia e eu não aguentava mais, tinha de beber água, custasse o que custasse!...

Só ali compreendi que a água é o maior bem de todo o ser humano e a sede o pior inimigo.

         Quando chegou a noite parámos já estoirados, com os ombros negros devido à bandoleira e ao peso da arma, ali iríamos comer e dormir.  Mandámo-nos para cima da erva de qualquer maneira, e ninguém se interessou por comer. O que  todos queríamos era beber.

         Eu não conseguia dormir com tanta sede e já nem as melgas nem os mosquitos me incomodavam.  Entretanto tocaram-me silenciosamente... era a minha vez, de ficar em vigilância.  Sentei-me com a arma no colo, esfreguei os olhos e quando os abri até me pareceu ver uma miragem.

         Ali mesmo à minha frente, o alferes Samaritano  ressonava de papo para o ar, com o cantil da água preso no cinturão a rir-se para mim. 

         Não hesitei e sorrateiramente me dirigi a ele.  Desapertei o botão do estojo e com facilidade saquei o cantil, que por tal sinal ainda estava bem aviado. Como um doido meti-o à boca e mal estava a dar a primeira golada, levei um valente pontapé no peito que até levantei voo e por pouco não vomitei o golo da água que tinha ingerido: e que bem que me soube ... a água.

         Ele ficou furioso e pior que uma barata. Cheio de cólera barafustou chamando-me ... Grande sacana deixa lá que amanhã vais mas pagar.  As blasfémias que ele proferiu não me afectaram em nada, o que ele me afectou foi o peito !...

         Ia-me partindo a caixa torácica com aquela patada.

         O terceiro dia principiou e com ele o sol tórrido e escaldante que nos ia queimando até às entranhas e a tortura da sede que cada vez mais se tornava difícil suportar, ao mesmo tempo que as nossas botas iam engolindo quilómetro após quilómetro, e nós exaustos, e quase sem forças só tínhamos um pensamento: Água ... água ... água.

         O Fiúza devorava comprimidos contra a secura e o certo é que lhe surtiam efeito, porque ele não se lamentava, muito pelo contrário até nos gozava dizendo:

         - Já viram o que era estarmos agora na Solmar ou na Portugália a beber umas canecas de cerveja fresquinhas?

         Ao mesmo tempo que limpava a boca com as costas da mão e fazia:

         - Há... há !...  o que aumentava ainda mais a nossa tortura.

         O major Carlos Pereira de vez em quando lá ia fazendo umas brincadeiras para nos animar. Por exemplo, agarrava na arma e punha-a a jeito como se fosse uma viola, depois virava-se para o guarda costas que sempre o seguia e dizia ! ...

         - Então não cantas?... Se eu toco tu tens de cantar! ...

         Nós ríamos com a brincadeira, ao mesmo tempo que palmilhávamos mais alguns quilómetros.

         Entretanto perguntaram aos prisioneiros se conheciam algum poço com água, e em boa hora o fizeram porque depois de andarmos mais 4 ou 5 Km deparámos com o tão desejado poço, com água verde e coberta de lodo e ainda por cima com a agravante de ter um abutre morto e já em completa decomposição!

         O major mandou que se tirasse o abutre com cuidado ... mas acabou por ser tirado de qualquer maneira, porque já se estava a desfazer: Depois ordenou que enchêssemos os cantis e misturássemos três ou quatro comprimidos purificadores e só depois de deixar passar meia hora podíamos beber a água, mas ninguém foi nisso, e depois de chocalhar bem o cantil meteu-se à boca e quase de um só fôlego, foi água, comprimidos e tudo.           Passados dez ou quinze minutos começámos a fazer a digestão e todo o mundo arrotava a podre.

         Depois de nos saciarmos e abastecermos, novamente prosseguimos o nosso caminho, felizmente sem combates ou emboscadas a assinalar, parando só para comer a parte da ração de combate que nos provocava menos sede e que distribuíamos também pelos prisioneiros, a quem tratámos como seres humanos que eram, dentro do possível sem ódios nem rancores.

         O Major mandou comunicar para Bissau, a pedir que nos trouxessem água.  Já pelo entardecer veio um helicóptero sobrevoar o sítio onde nos encontrávamos prontos a passar a noite e através de uma corda, desceram meia dúzia de latões com água, que depois de dividida, nem chegou a encher o cantil de cada um.

         Adormecemos de qualquer maneira, sem medo das cobras, do inimigo, ou do que quer que fosse - o cansaço já se tinha apoderado de nós e a partir daí ficámos sob a protecção de Deus.

         Pela madrugada, silenciosamente  começámos a caminhada, evitando assim o sol escaldante durante algumas horas, porque enquanto caminhávamos expostos ao sol, o suor escorria-nos pelo rosto e pescoço e as moscas não nos largavam, tentando beber o suor que de nós brotava.

         Continuámos a caminhar incessantemente sem nada encontrar. Este era já o quarto dia, a sede novamente se tinha apoderado de nós, já ninguém tinha água, e todos nós sabíamos que era quase impossível andar durante mais um dia, com os pés doridos e o corpo a tresandar com cheiro a "catinga".

         Por volta das 11 horas começámos a desconfiar que íamos em direcção ao quartel ... estávamos no caminho de Tite e disso já não tínhamos dúvidas, mas só quando obtivemos a confirmação ganhámos mais forças e alento para continuar.

         Ao meio-dia em ponto passámos a cancela de arame farpado e assim que entrámos no caminho que conduzia ao quartel, ficámos espantados e doidos de alegria, ao ver a imensidão de gente que nos esperava com vasilhas cheias de água para nos matarem a sede ... e entre essa gente, estava o meu amigo Mário, que logo correu para me abraçar e matar a sede, mas sempre a insistir para que bebesse pouco de cada vez, não me fosse dar algum colapso cardíaco.

         O Mário era condutor, mas como por ali os carros circulavam pouco por não haverem estradas, ele raramente conduzia. Fazia outros serviços correspondentes à formação a que pertencia, excepto o de atirador, de resto podia-se considerar um privilegiado.

        Entretanto disse-me que nesse dia logo pela manhã, tinha ido ajudar a matar e desmanchar uma vaca, para abastecer o quartel, só que os bifes iam direitinhos à messe dos oficias e ele como não era parvo nenhum, tinha "desviado" uma quantidade bastante razoável.  Dito isto mandou-me despachar e disse:

         - Vai lá tomar banho e tirar esse cheiro a catinga. Depois vais ter comigo ao abrigo, que nós vamos já tratar do petisco ... somos seis  contigo sete, já compramos um garrafão de 10 litros de vinho tinto da metrópole na cantina civil e vamos fritar os bifes e batatas. Despacha-te porque hoje vais tirar a barriga de misérias.

         Comi e bebi até quase rebentar, os bifes eram uma maravilha, tenrinhos p'ra chúchú. O vinho, as batatas, o pão, comi de tudo até não poder mais, só que o meu organismo fraco como estava, depois de andar praticamente quatro dias vazio. Com muitas dificuldades fui resistindo para não estoirar. Lá mais pela tarde cozeram camarões e caranguejos, e eu não podia resistir, e pior ainda, é que meia volta, volta e meia ... lá ia mais um copo de tinto, que era prá’testar.

         Pelas 18 horas quando me encontrava já bastante indisposto e já "de cabeça grande", despedi-me agradecendo ao Mário e aos restantes o grande banquete que me proporcionaram.

         Cá fora já era noite e eu sai em direcção à caserna onde se encontrava a minha cama. Acho que fiz o percurso todo a dançar a valsa.

         Deitei-me na cama vestido e calçado, tentei adormecer, mas foi impossível, porque passados poucos momentos comecei andar de carrossel ! ... Via tudo a andar à roda, a uma velocidade vertiginosa.

         De repente veio-me a vontade de gritar... Gregório ... Gregório... corri cá para fora meio a cambalear e num mar de aflição e sufoco, comecei a aliviar a carga.  Lembro-me que por ali perto não havia ninguém e até a caserna se encontrava deserta. Estava completamente sozinho.

         Mal empregados bifes que me foram oferecidos com tanto gosto e eu comi com tanto prazer. No fim foi tudo para os porcos.  Maldita sorte, ainda se ao menos estivesse aqui a minha querida mãe para me fazer um chá que me fizesse voltar a boa disposição.

         Sentei-me no chão com as costas encostadas à parede e comecei a chorar com as mãos na cabeça, lembrando a família, principalmente os meus filhos, a minha mulher, a minha avozinha e os meus pais, que se encontravam tão distantes e só com muita sorte os voltaria a ver.  E quanto mais pensava mais chorava, até que comecei a ficar mais aliviado e acabei por me deitar e adormecer.

         No dia seguinte pelas 9 horas despedi-me de Tite e dos amigos, com um adeus e até breve.

Fizemos o percurso a pé, até ao Enxudé, onde embarcámos desta vez numa L.D.M. (barco construído em ferro pertencente à Marinha, próprio para navegar naqueles rios).