SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

INSTRUÇÃO  DE  APROVEITAMENTO  OPERACIONAL

 

        

 

hegou a altura de fazermos três semanas de instrução nos pinhais da margem Sul do Tejo: nomeadamente Fonte da Telha, Aroeira, Belverde e Lagoa de Albufeira; quando essas zonas apresentavam ainda a beleza da natureza em todo o seu esplendor, virgens e puras como a água cristalina. Foram dias maravilhosos os que por lá passei nessa época e que ainda hoje recordo com emotiva saudade.  Vou tentar contar algumas passagens daquilo que por lá vivi.

         Estávamos então no mês de Outubro de 1968, quando para lá nos deslocámos  com o propósito de praticarmos diversos exercícios,  assim concluindo o I. A. O., a especialidade de atirador.

         Concentrámo-nos na Fonte da Telha, onde montámos o acampamento que era constituído por enfermaria, cozinha e outros, com tendas e carros próprios para o efeito, e era para lá que nos deslocávamos para as principais refeições do dia.  A comida era boa e convidava ao apetite, de resto nada mais nos faltava, por outro lado havia sempre um homenzinho com uma carroça no meio dos pinheiros que nos vendia tabaco, sandes, vinho, aguardente, bolos etc. O único inconveniente que o pobre do homem tinha, era ter de andar sempre atrás de nós, com a carroça e o burro muito bem escondidos, porque se o capitão o via, corria logo com ele. Mas o homem era astuto e quase sempre lhe trocava as voltas, por outro lado nós nunca o perdíamos de vista, e ele a nós muito menos.

         Caminhávamos horas sem cessar pelo meio das matas, a respirar o ar puro dos pinheiros que nos iam purificando o organismo e os pulmões, ao mesmo tempo que víamos os coelhos a saltar, à nossa frente.

         Dos diversos exercícios que fazíamos, alguns até se podiam considerar de alto risco. O pior deles era quando atavam uma corda de um lado ao outro de uma ravina e nos obrigam a passá-la a pulso com a arma e as cartucheiras às costas. Se tínhamos o azar de olhar para baixo até sentíamos arrepios. Noutras alturas saltávamos dos carros em andamento e ao cair enrolávamo-nos com a arma pelo asfalto fora.

         Excluindo estes dois exercícios mais arriscados, que praticámos somente três vezes, o resto eram brincadeiras: tais como chegarmos a tomar banho todos nus na praia deserta da Fonte da Telha.      

         À noite, para dormirmos, escavávamos um buraco na areia e cobríamo-lo com dois panos de lona, com botões de alumínio, desses que ainda hoje se vendem na Feira da Ladra; era assim que construíamos o nosso abrigo que dava para albergar três homens.  O capitão ordenou que se fizesse sentinela durante a noite. Portanto teríamos de nos render: um de nós tinha que ter a cabeça sempre de fora dos panos. E assim fizemos durante duas ou três noites; depois vimos que não havia controlo sobre nós e passámos a ferrar o galho durante toda a noite.

         Passaram-se alguns dias e sempre pela manhã apareciam os fascinas da cozinha com um garrafão de aguardente que nos ofereciam e que nós bebíamos ainda meio ensonados, diziam que foi o comandante que mandou, pois não queria que os homens se constipassem, e tinha razão porque o bagaço bebido em jejum devia matar os vírus todos de uma só vez.

         Mais tarde vim a saber o porquê desta gentileza. É que numa bela tarde chuvosa, o comandante do batalhão (tenente coronel) visitou o acampamento e deparou com os militares todos encharcados e de imediato mandou reunir os oficiais e, furioso, disse-lhes que queria homens para a guerra e não para o hospital.

         Foi a partir desse momento que nós começámos a matar o bicho, logo pela manhã, e muito mais, pois quando chovia abrigávamo-nos; embora fossem poucos os dias em que choveu.

         O campismo selvagem, para mal dos meus pecados, acabou quando eu até já estava habituado e a pensar que a guerra, feita assim desta maneira, seria a guerra ideal para todos nós e para todo o planeta, que tão doente ia ficando, com a destruição que o homem aos poucos lhe ia dando, cegos de poder e ambição.

         Novamente regressámos a Cavalaria 7. O regimento em todo o seu exterior era limpo, arrumado e muito bem concebido. Tinha uma parada que sucedia à porta de armas que dava para a Calçada da Ajuda.

         Por todo o extenso dessa parada encontravam-se as casernas, o refeitório, a enfermaria, a secretaria, os comandos e a barbearia. As casernas de vez em quando eram sujeitas a revista pelo capitão e por isso as camas tinham de ficar todos os dias impecavelmente bem feitas, caso contrário corríamos o risco de ver o fim de semana cortado.

         Os colchões das camas eram ainda de palha de milho, por isso mesmo atraentes a todos os demais parasitas.  Mas neste caso eram os percevejos os que mais nos atacavam.

         Durante a noite coçávamo-nos que nem uns desalmados e logo pela manhã era ver o corpo cheio de mordidelas e saliências que mais pareciam moedas de 10$00 antigas. Pulgas e piolhos quase não existiam; os percevejos devoravam todos os  rivais.

         Havia também a parada superior, onde se encontravam os pavilhões com os carros de combate, essa parada era enorme talvez com 8.000 m2 em toda a sua extensão, o solo era de pedra calcetada, era aí que fazíamos muitas das vezes, a ginástica matinal e praticávamos manejo de armas.

         A disciplina por lá tornava-se cada vez mais rigorosa e insuportável. Os oficiais do regimento, que nada tinham a ver connosco, pois eles ficavam por lá, e nós íamos só de passagem, sempre que tinham oportunidade, lixavam-nos ao mais pequeno deslize. As paradas tanto a inferior como a superior mantinham-se sempre impecavelmente limpas e ai de alguém que deitasse uma beata ou um pau de fósforo para o chão. Se fosse visto sujeita-se logo a ser punido.

         Para nos deslocarmos da parada inferior para a superior tínhamos de subir por uma enorme escadaria, toda em pedra branca calcetada, rodeada de árvores e flores, ao longo dessa bonita escadaria haviam bancos incorporados no muro que a acompanhavam forrados a azulejos e era nesses mesmos bancos, que nós descansávamos nos intervalos da instrução.

         Entre os oficias do regimento havia um que mais se destacava: o tenente Gaio. Gostava muito de subir e descer essa escadaria, mas sempre com sofisma de sacanice, quando ele passava tínhamos de nos levantar e bater-lhe a pala, caso contrário estávamos sujeitos a uma carécada.

         Um certo dia, estava eu, o Pato e outros dois camaradas, sentados ao cimo da escadaria, nos tais bancos forrados a azulejos!... O tenente Gaio, passou para cima, nós levantámo-nos e batemos-lhe a pala, excepto o Pato que ficou na mesma posição o tenente Gaio logo lhe fez uma advertência :

         - Então militar? 

         E o Pato de imediato se levantou, fazendo-lhe continência.

         O pior foi quando o tenente Gaio passou para baixo, voltando-se a repetir a mesma cena. Furioso mandou o Pato levantar-se e disse-lhe para o seguir levando-o direitinho à barbearia, de onde o pobre do Pato saiu com a cabeça toda rapada.

         Muitos mais houve, que por ordem e prazer do tenente Gaio, ficaram com a cabeça depenada.

         Mas a mim o que me custava mais era o Pato; ele era um pobre rapaz, muito pacato, que não se metia com ninguém e dava até a sensação que vivia num mundo só imaginado por ele. Tinha porém uma grave deficiência na fala, era um tanto ou quanto tati-bita-te, razão pela qual todos gostávamos de brincar e de puxar por ele, só para o ouvirmos falar.