SHERNO ou memórias da guerra na Guiné

 

RECRUTA  E  ESPECIALIDADE

 

        

 

ssentei praça no Campo de Tiro da Serra da Carregueira com o posto de soldado, no dia 7 de Maio de 1968, era então um menino de 20 anos.  Ali aprendi a manejar armas e algumas tácticas de guerra, essas instruções duraram pouco mais de 2 meses, deixei de ser recruta e passei a pronto.

         Imediatamente me deram outro destino, não havia tempo a perder tinham de fabricar homens para a guerra o mais rápido quanto possível.

         Apresentei-me no Regimento de Cavalaria 7 na Ajuda (Lisboa), em 6 de Julho de 1968 para tirar a especialidade de Atirador ! ... Isso é que não ... Isso nunca, eu não havia de ser Atirador, tinha de matutar alguma ideia engenhosa para me livrar de tal sorte, talvez inventar uma doença!  Tinha um filho e vinha outro a caminho, e havia ainda pouco tempo tinha ido ao Hospital Militar Anexo na Rua de Artilharia 1 visitar um amigo, e o horror que por lá vi não conseguia esquecer.

         Militares sem pernas, outros sem braços, outros cheios de estilhaços, outros com os mais incríveis ferimentos, enfim aquele hospital era um mar de sofrimento, e as urnas na capela contendo jovens que pela Pátria perderam a vida rodeadas de familiares que silenciosamente choravam e sofriam a perda dos seus entes queridos, que perderam a vida a lutar pela Pátria, no auge da sua juventude.

         Não! Custe o que custar eu não vou ser atirador! Eu não quero morrer em África, tenho de ser esperto e inteligente, tenho de inventar uma doença, hei-de ver crescer e  educar os meus filhos.

         A especialidade de Atirador começou. Formaram-se as companhias,  os Pelotões Operacionais, 1.º 2.º 3.º e 4.º e mais uma Companhia de Formação e Apoio. Eu fui destinado ao 2.º Pelotão. (Uma companhia era composta por 165 homens, um pelotão por 33 pouco mais ou menos).

         Começou a instrução e a preparação no duro.  Com ginástica, aplicação militar, manejos de armas, instrução nocturna, tiro ao alvo, tiro instintivo etc.

         A aplicação militar fazia-se em frente no quartel da P.M. (Polícia Militar) antigo Regimento de Lanceiros 2 e por vezes também se praticava tiro ao alvo, mas com armas de reduzido calibre, como era o caso da Manelica, a instrução nocturna fazia-se nos pinhais do Alto da Ajuda e o tiro na Serra da Carregueira. A maior parte das vezes deslocávamo-nos para lá a pé, outras de transporte. (Mais tarde voltarei a falar da Serra da Carregueira e da Manelica).

         Os dias passavam velozes e eu  não me  decidia a  pôr o plano em prática, o Batalhão (5 Companhias) embarcava rumo a Angola dentro de mês e meio pouco mais ou menos, o tempo escasseava e eu tinha de me decidir.

         E assim fiz; fui-me esquivando aos exercícios mais duros, até que passados poucos dias comecei a ser notado.

         - Então seu Serra:

         - perguntou o alferes:

         - está-se a baldar ou quê?

         Respondi que andava doente e que não aguentava; perguntou-me o que é que eu sentia; respondi que com o esforço que fazia me faltava o ar e me davam picadas no coração. 

         Estava dado o primeiro passo, mandou-me ao médico da Unidade que de seguida deu ordem para vir uma ambulância que me levasse ao Hospital Militar da Estrela onde fui examinado e de seguida transferido para o Hospital Militar Anexo na Rua Artilharia-1, onde permaneci internado durante um mês e meio aproximadamente, fazendo exames periódicos no Hospital da Estrela, que para o efeito me deslocava numa camioneta militar de passageiros.

         No dia seguinte às 8 horas da manhã lá segui até ao Hospital da Estrela para fazer os primeiros exames. Fui assistido por um médico que depois de me fazer algumas perguntas sobre a minha nova doença, mandou que me tirassem um electrocardiograma.

         Passados talvez 30 minutos, voltei novamente há sua presença com o resultado do exame, depois de uma breve apreciação, dirigiu-se a um armário de medicamentos e deu-me duas caixas com injecções, um saco de comprimidos e uma receita com as respectivas indicações que seria rigorosamente entregue ao responsável da enfermaria, no Hospital Anexo onde eu iria permanecer.

         Fiquei um pouco perturbado, pois se eu vendia saúde, ia agora levar injecções e tomar comprimidos, não podia ser tinha de evitar.

         Apresentei-me ao furriel enfermeiro chefe, e entreguei-lhe tudo o que o Médico tinha mandado, depois de verificar disse-me: leva os comprimidos e tomas 2 ao pequeno almoço, 2 ao almoço e 2 ao jantar, as injecções começas a levar amanhã ás 9 horas da manhã.  Chamou o cabo enfermeiro e disse:

         - Marques escreve o nome deste militar nestas caixas e aplica-lhe uma injecção todos os dias ás 9 horas da manhã.

         Bom; pensei, já sei quem é que me vai dar as injecções; o Marques parece ser um gajo porreiro e pode ser que eu lhe consiga dar a volta.

         Naquele hospital podíamos passear ou vaguear pelas salas incluindo visitar os feridos mais graves que tinham vindo da guerra, ou passar o tempo cá fora. Não era obrigatório estar na cama.

         Da parte da tarde lá fui  ter com o Marques, que na altura estava a dar uma injecção, e imediatamente pensei que amanhã seria eu.

         O Marques despachou o outro doente e perguntou o que é que eu queria, e respondi um tanto ou quanto a gaguejar:

         - Ó, ó Marques sabes, sabes é que tu tens aí duas caixas de injecções para me aplicar, e eu ... sou mesmo alérgico a picadelas. Sinto-me mal quando me picam. Ás vezes até desmaio depois é um problema para me acordarem.

         Não me podes trocar as injecções por comprimidos?

         Ele respondeu:

         - Não pá, comprimidos já tu tens, se não os quiseres tomar manda-os para a pia e não te esqueças de puxar o autoclismo.

         Isso já eu tinha pensado, mas de qualquer forma fiquei-lhe agradecido pela lembrança.

         Mas Marques,

         voltei eu,

         e as injecções?

         O meu problema são as injecções.

         Não quero levar com elas.

         Ele ficou calado e pensativo. Eu aproveitei o silêncio e disse:

         - Dou-te 7$50 por cada injecção que vais ter de me aplicar.

         Ele meditou, olhou para mim e disse:

         - Não isso é pouco porque se eu for descoberto corro o risco  de ir parar ao Forte de Elvas. - 20$00 por cada  injecção  e  não   se  fala mais nisso. Vem aqui todos os dias ás 9 horas e deixa o resto comigo.

         Assim fiz e os dias foram passando.

         Até que numa célebre tarde o Marques me veio chamar à sala para ir com ele à enfermaria. Entrei e ele fechou a porta. Estávamos só os dois. Reparei que estava preocupado e perguntei-lhe qual a razão de tamanha preocupação. Respondeu-me que estava com medo e receio que os Médicos na Estrela me mandassem arriar a cueca e não vissem picadela nenhuma no meu traseiro. Eu também fiquei receoso e respondi-lhe:

         - Eu já atingi tudo Marques, o que tu queres é sacrificar o meu cu. Ele respondeu um tanto ou quanto satisfeito e risonho:

         - É isso mesmo pá é mais seguro para mim e para ti também:

         - Pronto - respondi eu; prepara lá a agulha enquanto eu preparo o lenço para morder. Depois podes picar à vontade, não me deixes é o cu num passador.

         Picou até se fartar e eu aguentei que nem um herói mas o pior foi depois, que não me podia sentar. Valeu o sacrifício porque ficámos mais sossegados. O médico que me assistia e elaborava o meu processo, de vez enquanto perguntava-me se eu estava a tomar os comprimidos e a levar as injecções, ao que eu respondia: - Sim senhor doutor, rigorosamente a tempo e a horas, o que eu quero é melhorar.

         Normalmente fazia dois electrocardiogramas por semana, em estados psicológicos forçados e diferentes.

         Ou seja, algumas  vezes bebia café até à exaustão com o objectivo de me excitar e quando me deitava na maca pronto para o exame, punha-me a pensar nas mais loucas e horríveis cenas que certamente fariam tremer de medo e pavor o mais afoito homem que por acaso possa existir na terra. Tais como estar a ser devorado vivo por jacarés ou a ser cravejado de balas pelos imaginários «turras», a ser esfaqueado e a levar traulitada etc.

         Outras vezes relaxava-me pensando que estava num paraíso, onde tudo eram rosas, paz e amor, onde não existiam nem ódios, nem guerras, nem rancores.

         Desta forma, pensava eu que alterava as batidas do coração, e assim tinha fortes possibilidades de ludibriar os médicos. Se o consegui ou não, ainda hoje estou para o saber.